A ESPERANÇA


“A esperança. — Pandora trouxe o vaso que continha os males e o abriu. Era o presente dos deuses aos homens, exteriormente um presente belo e sedutor, denominado "vaso da felicidade". E todos os males, seres vivos alados, escaparam voando: desde então vagueiam e prejudicam os homens dia e noite. Um único mal ainda não saíra do recipiente; então, seguindo a vontade de Zeus, Pandora repôs a tampa, e ele permaneceu dentro. O homem tem agora para sempre o vaso da felicidade, e pensa maravilhas do tesouro que nele possui; este se acha à sua disposição: ele o abre quando quer; pois não sabe que Pandora lhe trouxe o recipiente dos males, e para ele o mal que restou é o maior dos bens — é a esperança. — Zeus quis que os homens, por mais torturados que fossem pelos outros males, não rejeitassem a vida, mas continuassem a se deixar torturar. Para isso lhes deu a esperança: ela é na verdade o pior dos males, pois prolonga o suplício dos homens.” [1]

Pois é caro leitor, você já tinha pensado na “esperança” sob este ponto de vista?? Nietzsche é realmente provocante!!

Bom, para quem não conhece o mito de Pandora desde o início, vale dar uma conferida no Google. Saber de onde e por que veio a caixa como presente dos deuses, por que Pandora abriu, por que Pandora fechou e outras coisas mais. Os gregos tinham nos mitos uma maneira muito peculiar de descrever a realidade. Vale à pena investir um tempinho pensando/pesquisando sobre as metáforas e as simbologias desse mito.

Ok, mas e por que Nietzsche classifica a esperança como o pior dos males??? Veja, aqui podemos pensar em três qualificações não muito agradáveis para descrever esta situação.

Primeira: se tem esperança quando não se conhece determinado fato. Exemplo: um amigo fez uma entrevista de emprego ontem e até agora você não soube se ele se saiu bem, se ele conseguiu o emprego. Assim, você tem a esperança de que ele tenha tido bons resultados com a entrevista, certo?! Portanto, neste primeiro momento, a esperança pressupõe ignorância.

Segunda: digamos que aquele mesmo amigo do primeiro exemplo, precisasse muito daquele emprego para o qual fez a entrevista; ele já estava há mais de 6 meses desempregado e já não estava mais podendo bancar as despesas básicas da casa e das crianças... Assim, ele já tinha tentado vários caminhos alternativos para ter uma outra fonte de renda, mas nada dava certo... Deste modo, ele tinha a esperança de que esta entrevista lhe rendesse um emprego e ele pudesse finalmente colocar as contas em dia. Ok, repare que por esta perspectiva a esperança pressupõe a impotência.

Terceira: Bom, agora imagine a esposa deste mesmo amigo (já envolvemos a família inteira aqui!!). Ela sempre foi uma mulher muito vaidosa e com o desemprego do marido, o padrão de vida da família caiu bastante. Ela já não consegue mais fazer as unhas no salão toda semana... Mas ela tem a esperança de que logo possa retomar este hábito. Aqui podemos encarar a esperança como uma forma particular de desejo. E todo desejo pressupõe a falta, ao passo que a satisfação do desejo pressupõe a presença. Portanto toda esperança é casta. Casta no sentido da abstenção completa dos prazeres.

Uma vez que, num exemplo rápido e simples, a esperança pressupõe ignorância, impotência e castidade, pode-se ter uma ideia do que porquê Nietzsche classificá-la como o pior dos males.

Ok, mas ainda temos a continuação da frase: “... pois prolonga o suplício dos homens”. Veja, uma pessoa que tem esperança não vive no presente, obrigatoriamente ela vive no passado ou no futuro. Enquanto este sentimento esperançoso é utilizado como recorrência para fugir do presente, a atitude de mudança é adiada. A ação é deixada para depois porque, esperançosamente, o depois será melhor do que o agora.

“Quem tem motivos para furtar-se mendazmente à realidade? Quem com ela sofre. Mas sofrer com a realidade significa ser uma realidade fracassada...” [2]

Olha a Genealogia daMoral passando por aqui de novo. Isso é moral de escravo. Escravo da moral! O senhor da moral vai lá e faz. Não fica esperando.

Receita para superar esperança e moral??? Não! Nietzsche não veio para eregir novos ídolos! Mas ele sugere caminhos alternativos à partir das portas que abre com seus escritos.

“Não se esqueça que os instantes que você vive aqui e agora e as pessoas com que convive aqui e agora são as mais importantes da sua vida por serem as únicas reais”. [3]

Isso, maravilhosamente, é amor fati! 💕 E é budismo também. E estoicismo.

“O budismo é uma religião para homens tardios, para raças bondosas, suaves, que se tornaram super espirituais, que sentem dor com muita facilidade (ainda falta muito para que a Europa esteja madura para ele) (…) o budismo é uma religião para o fim e para o cansaço da civilização”. [10]

=]

Boas reflexões e boa semana! 🙋

Até o próximo texto!

Renata Chinda

[1] Nietzsche – Humano Demasiado Humano, aforismo 71
[2] Nietzsche – O Anticristo, aforismo 15
[3] Rosa do budismo
[4] Nietzsche – O Anticristo, aforismo 22

CURIOSIDADES

Bom, já não é a primeira vez que citamos aqui no Zeitgeist um trecho do aforismo 22 de "O Anticristo - Der Antichrist". Este livro é particularmente intrigante por trazer à tona questões cristãs raríssimas vezes debatidas até hoje (agora imagine em 1888, ano de sua publicação). Neste aforismo e no seguinte, em especial, Nietzsche fala da domesticação da civilização através do cristianismo. Mas não pense que, para ele, o budismo era sinônimo de perfeição... Nietzsche tinha um olhar peculiar sobre tudo e sobre todos. Para ele, tanto o cristianismo quanto o budismo eram religiões da décandence. A diferença era que este era considerado mais evoluído que aquele por, dentre outros motivos, entender o sofrimento como parte da vida.

Ahhh, vale a nota: pode-se traduzir Der Antichrist tanto como "O Anticristo" como "O Anti-cristão". 

Bom, vale a leitura! São portas novas que se abrem no caminho. Passa lá na biblioteca do Zeitgeist! 💋

Comentários

Postagens mais visitadas