"É preciso ter asas quando se ama o abismo"



Em 1888, conforme indicam os fragmentos póstumos, Nietzsche tem por projeto escrever uma obra dividida em quatro livros. Sendo que os três primeiros teriam um caráter crítico, enquanto o último seria poético e intitulado “Dionisio: filosofia do eterno retorno”. Destes livros, apenas o primeiro foi redigido; trata-se de O Anticristo, no original alemão Der Antichrist – Fluch auf das Christentum, concluído em set/1888.

Em 15 de out de 1888, data de seu aniversário, Nietzsche faz uma anotação destinada a ser publicada no final de Ecce Homo, sua autobiografa intelectual e filosófica, por assim dizer.

“Neste dia perfeito, em que tudo amadurece e não é somente o cacho da videira que se amorena, acaba de cair um raio de sol em minha vida: olhei para trás, olhei para frente, nunca vi tantas e tão boas coisas de uma só vez. Não foi em vão que enterrei hoje meu quadragésimo quarto ano, eu podia enterrá-lo – o que nele era vida, está salvo, é imortal. A Transvaloração de todos os valores, os Ditirambos de Dionisio e, como recreio, o Crepúsculo dos ídolos, meu ensaio de filosofar com o martelo – tudo isso são presentes deste ano e, aliás, de seu último trimestre! Como não haveria eu de estar grato à minha vida inteira? ” [1]

Aqui aparece pela primeira vez uma citação de “Os Ditirambos de Dionisio”. Esta obra teve 7 títulos provisórios! São eles:

Cantos guerreiros da alma. O Vitorioso. Da Sétima solidão.
O Caminho da Grandeza. Canções de Zaratustra.
O túmulo de Deus.
Os Cantos de Zaratustra. Primeira Parte: O caminho da grandeza.
Ditirambos: Os cantos de Zaratustra. Primeira parte: da pobreza do mais rico.
O eterno retorno: danças e cortejos de Zaratustra.
Canções de Zaratustra. Primeira Parte. O caminho da grandeza.

Aqui, vale destacar a importância da insistência do título envolver a ideia de “canções”. Na terceira parte de Assim falava Zaratustra, após a seção “O convalescente” – que é o momento no qual Zaratustra enfrenta seu pensamento “abismal” – ele será instigado por seus animais a não mais falar, mas a cantar. E nós já conversamos aqui sobre a importância da Música para Nietzsche, uma vez que a Verdade não pode ser dita com palavras. E as últimas seções que encerram a terceira parte de Assim falava Zaratustra mostram que ele de fato não mais falava, mas “discorria com sua própria alma”. [2]

O título “O túmulo de Deus” tem a ver com o silêncio, com “A hora mais silenciosa”.

“Então, voltaram a falar-me sem voz: (...) ‘O orvalho cai sobre as ervas quando a noite mais silencia seus segredos (...). Ainda precisas tornar-te criança (...)’. E eu refleti longamente e tremi. Finalmente, porém, disse o que dissera no início: ‘Não quero’. Então, soltaram risadas ao meu redor. (...) E voltaram a falar-me, pela última vez: ‘Ó Zaratustra, os teus frutos estão maduros, mas tu não estás maduro para os teus frutos! Assim, deves voltar novamente para a solidão: porque ainda precisas sazonar’. E soltaram outra risada e foram-se embora; depois, fez-se silêncio em torno de mim e como que um duplo silêncio. Mas eu jazia no solo e o suor escorria-me pelo corpo. Agora, ouviste tudo e a razão pela qual devo voltar para o meu ermo. Nada vos escondi, meus amigos. Mas isto também ouviste de mim: quem ainda é o mais silencioso dos homens. ” [3]

Bom, aqui podemos lembrar da simbologia da noite, do orvalho, da criança e dos frutos com o texto Das três metamorfoses do Espírito.

“Assim, tudo, por sinais, me gritava: “É chegado o tempo! ”. Mas eu – eu não ouvia; até que, por fim, o meu abismo moveu-se e o meu pensamento me mordeu. Ah, pensamento abismal, que és o meu pensamento! Quando acharei a força de ouvir-te cavar, sem mais tremer? Até à garganta me sobem as pancadas do meu coração, quanto te ouço cavar! Também o teu silêncio ameaça suforcar-me, ó abismal silencioso! Nunca, ainda, me atrevi a chamar-te para cima: já foi suficiente que te trouxesse comigo! Ainda não tive força suficiente para o último ímpeto e audácia do leão. Já bastante terrível foi sempre, para mim, o teu peso; mas, algum dia, ainda hei de achar a força e a voz do leão que te chamem para cima!” [4] 

Este silêncio guardado durante longo tempo sobre o “pensamento abismal”, é uma maneira de esconder de si mesmo o aspecto assustador presente no Eterno Retorno. Mas, no capítulo “No monte das Oliveiras”, Zaratustra inventa o luminoso silêncio.

“Minha maldade e arte preferida é que o meu silêncio aprendeu a não trair-se pelo silêncio.  (...) Para que ninguém possa ver no fundo de mim e da minha última vontade – para isso inventei o longo e luminoso silêncio. ”[5]  

E, após passar pelo silêncio que ilumina o abismo, em “O Regresso”, e voltar para sua montanha, a solidão conversa com Zaratustra.

“E ainda te lembras, Zaratustra? Quando veio a tua hora mais silenciosa e te arrastou para longe de ti mesmo, ao falar-te com malvado murmúrio: ‘Dize a tua palavra e despedaça-te!’ ” [6]

Assimilado o Eterno Retorno, qual a única palavra que Zaratustra poderia dizer? J

SIM!

É o amor fati por aqui de novo! Presente no Capítulo “Canção do Sim e do Amém!”.

Simbologias transbordam aqui!! Além das já citadas anteriormente, cabe muito bem, agora, associar a videira e seus frutos a Dionisio. E já conversamos sobre Apolo e Dionisio aqui no Zeitgeist.

Agora, finalmente, podemos voltar aos Ditirambos de Dionisio. Esta foi a última obra de Nietzsche e tomou sua forma definitiva no dia 02 de jan de 1889. Ela é composta de nove textos:

Somente louco! Somente poeta!
O deserto cresce: ai daquele que abriga desertos...
Última vontade
Entre aves de rapina
O sinal de fogo
O sol se põe
O lamento de Ariadne
Fama e eternidade
Da pobreza do mais rico

No texto sobre Apolo e Dionisio, trouxemos “O lamento de Ariadne”. Hoje, de maneira a sintetizar o abismo encontrado na subida da montanha, trazemos “Entre aves de rapina”, um dos Ditirambos de Dionisio. Para ler o poema, basta conferir as Curiosidades do texto de hoje.

E você? Já olhou o abismo de cima da montanha? Já parou para pensar na hipótese da vida inteira se repetir eternamente de maneira igual e nos mínimos detalhes? Já amou o seu destino hoje? =]

Assim falava Zaratustra!

Boa semana e boas reflexões! 🙋

Renata Chinda

[1] Cadernos Nietzsche 30, 2012,  p183-219
[2]  Nietzsche - Assim falava Zaratustra - O convalescente
[3] Nietzsche - Assim falava Zaratustra - Das três metamorfoses do Espírito
[4] Nietzsche - Assim falava Zaratustra - Da bem-aventurança a contragosto
[5] Nietzsche - Assim falava Zaratustra -  No monte das oliveiras
[6] Nietzsche - Assim falava Zaratustra - Do regresso

CURIOSIDADES

(1) “Os Ditirambos de Dionisio” foram pulicados numa versão conjunta com “O Anticristo” pela Companhia das Letras. Vale a nota, de que em cartas enviadas ao amigo Peter Gast, Nietzsche indica a leitura de O Anticristo apenas depois da leitura de Ecce Homo, uma vez que esta obra serviria para a apresentação do problema da transvaloração de todos os valores.  
Outro ponto bastante relevante é a simbologia bíblica empregada nas obras do Nietzsche:  sete dias Zaratustra dormiu depois de assimilar o eterno retorno; no monte das oliveiras; Nimrod e a serpente são citados no Ditirambo “Entre as aves de rapina”; entre muitas outras simbologias.

(2) “Sê prudente, Ariadne!... Tens orelhas pequenas, tens minhas orelhas: Enfia nelas uma palavra prudente!” Em “O lamento de Ariadne” o SIM à vida (amor fati) aparece novamente.

(4) A versão completa dos Ditirambos a Dionisio, em inglês, você encontra lá biblioteca do Zeitgist. 

(3) ENTRE AVES DE RAPINA

Quem aqui quer descer,
Como rapidamente
A profundeza o traga!
- Mas tu, Zaratustra,
Amas ainda o abismo,
Fazes como o abeto? –

Ele finca raízes
Onde o próprio penhasco
Treme ao olhar a profundeza -,
Ele hesita à beira de abismos
Onde tudo em volta
Quer precipitar-se:
Em meio à impaciência
Do cascalho selvagem, do regato a despencar
Pacientemente tolerante, duro, calado,
Solitário...

Solitário!
Mas quem ousaria
Ser hóspede aqui,
Ser teu hóspede? ...
Uma ave de rapina talvez,
Que se apega aos cabelos
Do firme sofredor
Em maldosa alegria,
Com louca risada,
Risada de ave de rapina...
Por que tão firme?
- ela zomba cruel:
É preciso ter asas quando se ama o abismo...
É preciso não pendurar-se
Como tu, pendurado! –

Ó Zaratustra,
Cruel Nimrod!
Ainda há pouco caçador de Deus,
Rede para fisgar toda virtude,
Flecha do mal! –
Agora –
Por ti mesmo caçado,
Presa de ti mesmo,
Em ti mesmo penetrado...
Agora –
Solitário contigo,
“a dois” no próprio saber,
Entre cem espelhos, falso ante a ti mesmo,
Entre cem recordações
Incerto,
Cansado de toda ferida,
Frio de todo gelo,
Estrangulado em teu próprio laço,
Conhecedor de si!
Carrasco de si!

Por que te amarraste
Com o laço de tua sabedoria?
Por que atraíste a ti mesmo
Ao paraíso da velha serpente?
Por que insinuaste, rastejaste
Para dentro de ti – de ti? ...

Agora um doente,
Vítima do veneno da serpente;
agora um prisioneiro
que tirou a pior sorte:
trabalhando curvado
na própria mina,
em ti mesmo escavado,
a ti mesmo perfurando,
desajeitado,
teso,
um cadáver -,
assoberbado por cem fardos,
sobrecarregado de ti,
um Sabedor!
Um Conhecedor de si!
Ó sábio Zaratustra! ...

Buscaste o fardo mais pesado:
E encontraste a ti -,
Não te despojas de ti...

Espreitando,
Agachado,
Alguém que não mais fica em pé!
Ainda terás a forma de tua tumba,
Espírito deformado! ...

E há pouco ainda tão orgulhoso,
Nas muletas do teu orgulho!
Ainda há pouco o eremita sem Deus,
Convivendo com o Demônio,
O escarlate príncipe de toda altivez! ...

Agora –
Entre dois Nadas
Encurvado,
Um ponto de interrogação,
Um mudo enigma –
Um enigma para aves de rapina...
- elas já te “solverão”,
Já têm fome de tua “solução”,
Já esvoaçam em torno de ti, seu enigma,
Em torno de ti, enforcado!
Ó Zaratustra! ...
Conhecedor de si! ...
Carrasco de si! ...


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