A GRANDE SAÚDE – MENS SANA IN CORPORE SANO



Zeitgeist completa hoje 1 ano de seu primeiro texto!! =] Assim sendo,decidimos por publicar um texto "edição comemorativa" deste dia tão especial para nós! Boa leitura!!

Von allem Geschriebenen liebe ich nur Das, was Einer mit seinem Blute schreibt. [1].
 *De tudo o que está escrito, só amo o que se escreve com o próprio sangue.

Hoje conversaremos sobre a Grande Saúde em Nietzsche. Mas... filosofia e saúde?

“... essas perguntas tão simpáticas sobre o relacionamento entre saúde e filosofia (...)” 😎 [2]

Para Nietzsche cada indivíduo apresenta um modo fisio-psicológico de ser. Ou seja, está tudo interligado. É como se mente e corpo trabalhassem juntos para a grande saúde ou doença fisio-psicológica do indivíduo. Há vários modos de se ser saudável e também vários modos de se ser doente.

Olhando por este ponto de vista, pensamentos e atitudes são sintomas de uma potência interna que se exterioriza através da carne. [3]

Mas afinal, o que é, para Nietzsche, a grande saúde?

“(...) aquele excedente de forças plásticas, regeneradoras, conformadoras e restauradoras, que é justamente o sinal da grande saúde, aquele excedente que dá ao espírito livre a perigosa prerrogativa de viver para o ensaio e poder oferecer-se à aventura: a prerrogativa de maestria do espírito livre. ” [4]

A grande saúde pode ser vista como a honrosa regalia de uma liberdade sem igual conquistada por um espírito que se tornou livre. E já conversamos aqui no Zeitgeist sobre o Espírito Livre. Mas veja, essa liberdade conquistada vai além do conceito lugar-comum de se poder praticar atitudes de maneira desmedida. A liberdade aqui tratada seria como uma auto-liberdade. Consiste em se permitir a auto-experimentação, consiste no auto-domínio e na disciplina do coração e é isto que possibilita caminhos para muitos e opostos modos de pensar.

Cabe ainda a ressalva de que este tipo de liberdade, da qual somente um espírito livre é capaz, diz respeito também à valoração dos valores estabelecida pela moral nobre. Ou seja, à diferenciação entre “bom e ruim” e “bom e mau”.

O escravo da moral não consegue se permitir uma auto-experimentação. Ele já tem valores definidos a partir da moral de rebanho da qual faz parte. Já lhe disseram o que é e o que não é permitido - e ele aceita. O nobre, por sua vez, se permite a auto-experimentação. Ele experimenta pela sede de conhecimento, pela expansão de fronteiras, pela elevação de sua vontade de potência.  E aí existem duas possibilidades: a primeira é ele se deparar com algo que de fato aumenta sua VdP e a segunda é o encontro com algo que a limita ou a reduz. E quando esta segunda alternativa se consolida, é a grande saúde que entra em cena. 

 O tipo nobre é aquele para quem até no ferimento se acha o poder curativo.” [5]

O tipo nobre é aquele no qual a grande saúde, uma vez instaurada, proporciona um deslocamento de perspectivas. Exemplo: aconteceu algo que reduz a VdP, que consome as energias do indivíduo. O nobre toma a situação como uma oportunidade de conhecimento sobre o que lhe é salutar, uma oportunidade de evolução pessoal e aos poucos se auto esculpe. Ferramentas nietzschianas úteis neste processo: amor fati, eterno retorno, ubermensch, ...

Ahhhhh a Grande Saúde!!! “(...) do tipo que não apenas possuímos, mas também adquirimos e precisamos readquirir constantemente, porque sempre a abandonamos, e precisamos abandonar!” [6] É o processo de individuação! É o constante criar e destruir, é a transiência do mundo!

“ (...) o fenômeno dionisíaco que torna a nos revelar sempre de novo o lúdico construir e desconstruir do mundo individual como eflúvio de um arquiprazer, de maneira parecida à comparação que é efetuada por Heráclito, o Obscuro, entre a força plasmadora do universo e uma criança que, brincando, assenta pedras aqui e ali e constrói montes de areia e volta a derrubá-los.” [7]

Para um exemplo prático-metafórico imaginemos a seguinte situação. O indivíduo sai de casa para subir até o topo da montanha. Ao longo da trilha passa por vários obstáculos que não o abatem. Entretanto, no meio da caminhada, ele se depara o maior dos obstáculos: um abismo. E, por ele já haver passado por um abismo anteriormente, em outra caminhada, ele acredita que já sabe transpassar este. Porém ao fazê-lo, escorrega e quase cai. Neste momento é a grande saúde que entra em cena para ajudá-lo a recobrar forças para que ele seja capaz de enfrentar o medo e não cair no abismo. E, sendo este um tipo nobre, finalmente à salvo de mais um abismo, ele não hesita quando passa por uma situação semelhante. Se mais um abismo houver, mais um abismo ele passará. Não há resentimento, não há rancor, não há ódio. Há o esquecimento, a auto-superação e a renovacao de energias para seguir a caminhada rumo ao topo, rumo a  lugares que ninguém sequer sonhou – rumo à expansão de suas fronteiras.

É somente ao preço de um enfrentamento que nos tornamos dignos de uma vida grande. [8]

É preciso ceder espaço para uma segunda inocência que é ainda perigosa nesta alegria, mais infantil e cem vezes mais refinada do que jamais fora antes.

“Saímos de abismos muito profundos, recuperamo-nos de doenças muito graves, como a doença da grave desconfiança, da qual saímos recém-nascidos, com uma nova pele, com muito mais pruridos e maldades, e um sabor mais refinado para a alegria, uma língua mais delicada para todas as coisas boas, sentidos mais apurados para a diversão.“ [9]

O que significa que recobrar a saúde é uma arte a ser muito bem trabalhada! Nós, argonautas do ideal, muitas vezes naufragados e sofrendo muitos danos, perigosamente saudáveis temos ainda à nossa frente um país não descoberto cujas fronteiras ninguém ainda avistou. 

Esperamos que a partir daqui tenha ficado um pouco mais clara a relação entre saúde e filosofia. Mens sana in corpore sano aqui significa que precisamos vigiar nosso pensamento, o gerador de ideias, e também nossas atitudes, uma vez que refletem nosso mundo interior, nossa psiquê.  

Até qualquer hora! 🙏

Renata Chinda
rechinda@gmail.com

CURIOSIDADES

01) Imagem do texto de hoje: "the self made man" esculpido em bronze por Robert Carlyle 

02) Mens sane in corpore sano - citação latina do poeta romano Juvenal em sua resposta ao que se deve desejar na vida. Segue versão traduzida livremente do latim:


Deve-se pedir em oração que a mente seja sã num corpo são.
Peça uma alma corajosa que careça do temor da morte,
que ponha a longevidade em último lugar entre as bênçãos da natureza,
que suporte qualquer tipo de labores,
desconheça a ira, nada cobice e creia mais
nos labores selvagens de Hércules do que
nas satisfações, nos banquetes e camas de plumas de um rei oriental.
Revelarei aquilo que podes dar a ti próprio;
Certamente, o único caminho de uma vida tranquila passa pela virtude.


BIBLIOGRAFIA

[1] NF-1882,5 - Nachgelassene Fragmente November 1882 Februar 1883.
[2] A Gaia Ciência - prólogo 2
[3 Razao Inadequadadisponível aqui
[4] Humano, Demasiado Humano aforismo 4
[5] Crepúsculo dos ídolos – prólogo
[6] A Gaia Ciência – aforismo 382
[7] O Nascimento daTragédia – aforismo 24
[8] Crepúsculo do ídolos – V aforismo 1
[9] A Gaia Ciência – prefacio 4



Comentários

  1. Olá Renata! ainda estou na fase de pesquisa e aprendizado constante..."É somente ao preço de um enfrentamento que nos tornamos dignos de uma vida grande. " Acredito que tais enfrentamentos ocorrem somente quando percebemos a fragilidade de qualquer "conceito pétreo" que deixamos que se aminha-se em nós, ser um espírito livre acarreta renovar-se a cada momento e mesmo assim esforçar-se para compreender aqueles que não tiveram o livramento e mais ainda perceber que o saber do outro é produto de vivência, sensibilidade e percepção tudo isso sempre forjado numa relação tempo e espaço particular.
    Já aprendi que ser um espírito livre não é ser um "bicho-grilo" que repensa o mundo segundo uma ótica indecifrável é preciso pautá-la em argumentos que se renovam mudando o próprio argumento e por consequência um conceito particular e ainda em maior consequência um comportamento.
    Sigo aprendendo e me renovando silenciosamente.
    Um abraço

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    1. Que comentário maravilhoso, Antonio!! :) Obrigada por estar com a gente aqui no Zeitgeist! Forte abraço

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