O ESPÍRITO LIVRE


“De tudo que é humano, nada me é estranho (...) As curvas da estrada, as pedras no caminho, os filmes de guerra e as canções de amor. ” [1]

Humano, Demasiado Humano - um livro para Espíritos Livres, no original alemão Menscheliches - Alzumenschiches, foi publicado em 1878 e traz críticas à filosofia metafísica, à arte romântica e à religião cristã. O grande destaque do livro é a concepção do ESPÍRITO LIVRE. Humano, Demasiado Humano foi escrito em 1876, época em que Nietzsche, Paul Rée, Malwida von Meysenbug e, posteriormente, Lou Salomé fundaram no sul da Itália uma espécie de claustro para espíritos livres. Mas afinal, o que é um Espírito Livre?

“É chamado de espírito livre aquele que pensa de modo diverso do que se esperaria com base em sua procedência, seu meio, sua posição e função, ou com base nas opiniões que predominam em seu tempo. Ele é a exceção, os espíritos cativos são a regra.” [2]

O Espírito Livre é capaz de suspeitar, de ter um olhar crítico sobre os valores fundadores da cultura e com isso propor a desconstrução do pensamento moral da sua época. Parece simples, né?! Mas veja só, se pensarmos em questões morais considerando opostos como certo/errado, bom/ruim, o Espírito Livre não faria jus ao seu segundo nome e ficaria sempre preso a si mesmo.  Assim, Nietzsche propõe que o crescimento de um Espírito Livre se dá pela potência de afirmação de si, para além do bem e do mal. E nós já conversamos sobre estes pontos nestes textos aqui: Vontade de Potência e Além do Bem e do Mal.

Além disto, o Espírito Livre faz lembrar uma semente do que seria o Ubermensch apresentado em 1883 em “Assim falava Zaratustra”, não é mesmo? Então qual a novidade aqui? Caro leitor, sente-se confortavelmente e aperte os cintos, pois a novidade está não no crescimento de um Espírito Livre, mas no nascimento!! =] O que leva alguém a entrar neste mar infinito? O que desencadeia um processo de mudança como esse?

“Pode-se supor que um espírito, em que o tipo ‘espírito livre’ deva tornar-se alguma vez maduro e doce, teve seu acontecimento decisivo em um grande livramento e, por isso mesmo, que era antes um espírito ainda mais prisioneiro e parecia acorrentado para sempre a seu canto e pilar. ” [3]

O que aprisiona homens é a moral, os deveres, a veneração pelos primeiros passos no que seria “seu mundo”, as primeiras descobertas e até mesmo os instantes mais supremos prendem com firmeza. É aquela reserva e delicadeza diante de tudo que foi venerado e digno desde sempre. O que acorrenta, o que limita são as ideias prontas que foram passadas de geração em geração, que se tornaram tradição e que nunca foram questionadas a respeito de veracidade, utilidade ou função. Quando o espírito começa a questionar esses valores e conceitos vem o que Nietzsche chama de “o grande livramento”, ou seja, a liberação das amarras que o atavam à uma vida limitada. E quanto maior a prisão, maior o livramento, mais arrebatado sente-se um espírito como este quando liberto.

“O grande livramento, para os que estão presos a tal ponto, vem subitamente, como um tremor de terra: a alma jovem é abalada de uma vez, arrancada, arrebatada – ela mesma não entende o que se passa. Um impulso e ímpeto reina e se torna senhor dela como um comando; desperta uma vontade e desejo de ir avante, para onde for, a qualquer preço; uma impetuosa e perigosa curiosidade por um mundo inexplorado se inflama e crepita em todos os seus sentidos. ‘Antes morrer do que viver aqui’ – assim soa a voz imperiosa e a sedução: e este ‘aqui’, esse ‘em casa’, é tudo o que ela havia amado até então! Um súbito pavor e premonição contra aquilo que ela amava, um relâmpago de desprezo contra aquilo que para ela se chamava ‘dever’, um desejo tumultuoso, arbitrário, vulcânico, de andança, estrangeiro, estranhamento, resfriamento, sobriedade, enregelamento, um ódio ao amor, talvez um olhar iconoclasta para trás, para ali onde ela até então rezara e amara, talvez uma brasa de vergonha daquilo que acabara de fazer e, ao mesmo tempo um regozijo por tê-lo feito, um arrepio bêbado, interno, jubilante, em que se denuncia uma vitória – uma vitória? Sobre o quê? Sobre quem? Uma enigmática, interrogativa, problemática vitória, mas sempre a primeira vitória: - eis o que há de ruim e doloroso na história do grande livramento. ” [3]

Este é o passo no qual, após questionar valores, o espírito livre se percebe vivendo até então aprisionado, tolhido de seus desejos mais profundos e também mais libertadores. Ele se dá conta de que deixou de fazer muita coisa por preconceitos morais criados por valores humanos, demasiado humanos. E ele desata todos os nós que o prendiam a estes valores tradicionalistas. Sente um intenso desprezo por tudo que até então estava impregnado na sua pele e na sua mente. E, principalmente, sente o gosto da vitória, da superação de si mesmo por ter conseguido ver o mundo do alto das montanhas e já ser capaz de se distinguir do rebanho de espíritos cativos.

Mas por que afinal a vitória também é classificada como problemática no aforismo acima citado? Porque a solidão aparece gradativamente na vida do Espírito Livre, uma vez que os espíritos cativos são a regra. E ninguém educa para a solidão, até mesmo este aprendizado deve ser feito sozinho. Zaratustra é um excelente exemplo! Ele escalou o pico mais alto e foi viver sozinho nas montanhas.

Mas veja, tudo isso são metáforas. Não quer dizer que Espíritos Livres são necessariamente pessoas sozinhas, isoladas e que para vermos o mundo com outros olhos o melhor é subir montanhas. Claro que não! J Isso quer dizer que mesmo estando entre várias pessoas, o espírito livre sabe, ele tem consciência, de que a vida dele depende só dele, porque a auto-experimentação é o caminho para uma vida plena, é o caminho para tornar-se quem de fato se é.  Já a simbologia da montanha traz consigo a ideia de vencer obstáculos, de auto-superação, até que se chega ao topo, à individuação, ao homem que tem uma visão de mundo de inabalável confiança e calma segurança. E sobre isso nós já conversamos em Apolíneo e Dionisíaco. O Espírito Livre reconhece sua energia e sabe que ela faz parte de uma energia muito maior.

O nascimento de um Espírito Livre não é como o nascimento de um humano... O Espírito Livre pode levar anos para concluir seu nascimento e não pode nem mesmo dispensar conflitos internos que levam ao saudosismo do antigo modo de viver. Esses conflitos, saudosismos, essa doença, assim chamado por Nietzsche, é isca para o conhecimento, para o auto-domínio, para a disciplina do coração e permite o caminho para muitos e opostos modos de pensar. Como não lembrar do amor-fati e do eterno retorno aqui?! Quando esses obstáculos são superados, o Espírito Livre é tomado por uma energia restauradora que é o sinal da “grande saúde”! É o que dá ao Espírito Livre a prerrogativa de viver para o ensaio, de poder oferecer-se à aventura.

“Vive-se, não mais nas cadeias de amor e ódio, sem sim, sem não, voluntariamente perto, voluntariamente longe, e de preferência (...) outra vez voando para o alto; está-se mal acostumado, como todo aquele que viu uma vez uma descomunal multiplicidade abaixo de si – (...) ao espírito livre dizem respeito somente coisas – e quantas coisas! – que não mais o afligem.”[4]

E nós? Até onde nos permitimos chegar? Até onde nos auto-experimentamos? Quais são nossos limites? Quais obstáculos estão à nossa frente esperando para serem transpostos para que possamos chegar ao topo de nossa própria montanha? Vale a reflexão, acompanhada de toda a simbologia que merece e que é capaz de transcrever nossa evolução interior.

Torna-te quem tu és, consciente de todos os "eus" que compõe este corpo que habitas!

Até o próximo texto! 🙋

Renata Chinda- rechinda@gmail.com

[1] Humano demais; composição de Adal Fonseca, Humberto Gessinger e Luciano Granja.
[2] Nietzsche, Humano Demasiado Humano, §225
[3] Nietzsche, Humano Demasiado Humano, Prefácio §3
[4] Nietzsche, Humano Demasiado Humano, Prefácio §4




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