AQUILO QUE CHAMAM AMOR
Este
texto não precisa de uma introdução, parece ter sido escrito na linguagem do
degelo: contém atrevimento, inquietação, contradição e tempo de primavera -
para que assim sejamos constantemente lembrados da vitória sobre o inverno. O
espantoso é que com isso muita coisa insensata e louca vem à luz, muita
maliciosa delicadeza, até mesmo esbanjada. Incipit
tragoedia!* *Que se inicie a tragédia.
O
parágrafo acima é uma adaptação do prefácio de A Gaia Ciência e caiu muito bem
ao tema de hoje! Aliás é desta mesma obra que segue um trecho do aforismo sobre
aquilo que chamam amor.
“Cobiça
e amor: que sentimentos diversos evocam essas duas palavras em nós! — e
poderia, no entanto, ser o mesmo impulso que recebe dois nomes; uma vez
difamado do ponto de vista dos que já o possuem, nos quais ele alcançou alguma
calma e que temem por sua “posse”; e outra vez do ponto de vista dos
insatisfeitos, sedentos, e por isso glorificado como “bom”. Nosso amor ao
próximo — não é ele uma ânsia por nova propriedade? E igualmente o nosso amor
ao saber, à verdade, e toda ânsia por novidades? ”[1]
Mas
então, para Nietzsche amor e cobiça são a mesma coisa?! Sim, caro leitor, podem
ser a mesma coisa. Aquilo que chamamos corriqueiramente de amor, para
Nietzsche, tem o mesmo valor de cobiça. Para entender isto, podemos primeiro
lembrar do texto sobre Vontade de Verdade. Lá chegamos à conclusão de que as
palavras nem sempre representam com exatidão o que se passa em nossa cabeça,
uma vez que elas funcionam como um tradutor de ideias, uma espécie de legenda
para o que pensamos.
Agora,
vamos relembrar o texto sobre Vontade de Potência (VdP). A VdP é uma força
intrínseca a tudo, é uma energia em expansão e constante movimento. E para que
a VdP se efetive se faz necessária a assimilação de forças menores, o que
levaria o sujeito a alcançar sempre mais potência.
Agora
começa a fazer a sentido a ideia de que cobiça e amor, como corriqueiramente
chamamos, podem ser a tradução de um mesmo sentimento? Veja, é como se o
sentido da palavra “amor” fosse costumeiramente utilizado de forma inadequada –
e isso desde a época de Nietzsche (ou mesmo muito antes)! Por isso, ele diz que
amor pode ser a tradução de um impulso que evoca a necessidade de mais
potência, de conquista de um território que não é nosso (ao menos por enquanto,
diriam os conquistadores de plantão). O amor tido sob essa concepção se
transforma num jogo de sedução, numa conquista (podemos inclusive aqui pensar
em batalhas épicas como aconteceu na história de Páris e Helena de Tróia e a
concepção de 'conquista' entra também no jogo das palavras). Tudo isso para
alcançar mais potência! Para ser mais perante os outros. É intrínseco ao ser
humano. É a VdP apontada para fora de si, mas podemos apontá-la para dentro
também, é quando se tem a auto-superação, quando se vence forças internas como
medo, vícios, procrastinação...
E
essa distorção da palavra “amor” tem consequências pós-modernas! Lembra do
texto sobre o Niilismo? Pois é, o niilismo característico dos tempos nos quais
vivemos leva a uma ausência de valores morais que tem como consequência a falta
de limites e a ausência de princípios. Agora tenha em conta que o único
objetivo de efetivação de uma VdP apontada para fora é a conquista do
território do outro. Assim, uma vez conquistado o alvo, o objetivo é tido como
atingido e parte-se em busca de um novo alvo, uma nova conquista, um novo
objetivo. E isso é chamado hoje em dia de o jogo do amor...
Em
2003, Zymunt Bauman – sociólogo nietzschiano de carteirinha – lançou o livro Amor Líquido – Sobre a Fragilidade dos Laços
Humanos. Nesta obra, Bauman fala sobre a atual efemeridade dos
relacionamentos de todos os tipos, mas principalmente dos relacionamentos ditos
amorosos. Amor Líquido significa um amor fluido, que escorre pelos dedos, que
tem a forma que se dá. Em outras palavras: as relações amorosas deixaram de ter
aspecto de união e passaram a ser um mero acúmulo de experiências. E veja só, segundo
Bauman, isto se dá pela insegurança estrutural do sujeito pós-moderno. Entenda-se aqui 'sujeito' tanto homens como mulheres.
Aqui
vale a indicação de leitura de ao menos uma das obras do Bauman, a qual mais
lhe apetecer, apenas leia! Ele descreve o meio social e o sujeito pós-modernos
por um viés único, passando pelo mal-estar social a nível global e pelos nossos
contemporâneos Pânico e Depressão.
Bom,
voltando ao tema, até onde efetivar nossa VdP e saciar nossos desejos de
conquista - que são inatos vale relembrar – podem ser exercidos sem que se
influencie na VdP alheia? O que é moral, amoral ou imoral para o meu ser, para
o sujeito que eu sou?
Para
instigar ainda mais os pensamentos domingueiros noturnos, segue mais um
aforismo nietzschiano:
“Quando
um rico toma do pobre um bem (por exemplo, o príncipe toma do plebeu a amada),
nasce no pobre um erro; ele pensa que aquele tem de ser totalmente celerado
para tomar dele o pouco que ele tem. Mas aquele não sente tão profundamente o
valor de um único bem, porque está habituado a ter muitos: assim, não pode se pôr
na alma do pobre e está longe de fazer tanta injustiça quanto este acredita.
Ambos têm, um do outro, uma falsa representação. A injustiça do poderoso, a que
mais revolta na história, está longe de ser tão grande como parece. Já o
sentimento herdado de ser um ser superior com direitos superiores torna
devidamente frio e deixa a consciência tranquila: nós mesmos, quando a diferença
entre nós e um outro ser é muito grande, não sentimos mais nada de injustiça e
matamos uma mosca, por exemplo, sem nenhum remorso na consciência. (...). Sim,
aquele que é cruel não é cruel na medida em que o acredita o maltratado; a
representação da dor não é o mesmo que o padecimento dela. (...) Causa e efeito
são cercados, neste caso, por grupos de sentimento e de pensamento inteiramente
diferentes; e, no entanto, se pressupõe involuntariamente que o que age e o que
sofre pensam e sentem igual, e, em conformidade com esse pressuposto, se mede a
culpa de um segundo a dor do outro. ” [2]
Não,
aquilo que chamam “amor” hoje em dia, não é amor! É VdP apontada para fora num
mundo pós-moderno. O que acaba resultando nas conexões “amorosas” tipo wifi tão
comuns que vemos por aí: conexão e desconexão rápidas, basta clicar em “esquecer
esta rede”. Tempos pós-modernos. Mas então, o que é o amor de fato? Segue o
link de um vídeo já bem rodado na rede. =] Talvez ele seja capaz de alargar
horizontes.
Boa reflexão! E até o próximo texto! 🙋
Renata Chinda- rechinda@gmail.com
CURIOSIDADES
(1)
Nietzsche
amou muito uma grande pensadora de sua época: Lou Andreas Salomé. Eles não
ficaram juntos. Lou era uma exímia sedutora e conquistou as mentes mais
brilhantes do final do século XIX. Podemos citar, além de Nietzsche, Paul Rée,
Freud, Rilke...
Aqui,
falamos de “amor” nos tempos pós-modernos, mas tem muito mais a ser dito! Quem
se interessar por mais aforismos nietzschianos sobre o amor, fica a sugestão de
leitura desta coletânea: 100 aforismos sobre o amor e a morte.
(2)
Na
mitologia grega, havia uma bela e jovem mortal chamada Psiquê (a personificação
da Alma). Psiquê era tão linda que despertou a ira de Afrodite (deusa da
beleza, do amor e da sexualidade). Afrodite, enfurecida pela beleza da jovem,
pede que seu filho Eros (o deus do amor) acerte Psiquê com uma de suas flechas
e faça-a se apaixonar pelo mais desprezível dos homens. Mas quando Eros
encontra Psiquê, ele se apaixona!!
A
história é linda! Para quem quiser conhecê-la completamente uma consulta à
wikipedia resolve. O grande spoiler é que Eros e Psiquê ficam juntos, se
separam e depois para que voltem a ficar juntos os jovens passam por uma série
de provações... Eros foi em busca de Zeus para que ele tornasse imortal sua amada.
Psiquê, por sua vez, foi ao inferno e voltou (a pedido da sogra para buscar a
beleza de Perséfone, a deusa do mundo inferior e esposa de Hades). E é nesse
trecho da história que a dor no fundo esconde uma pontinha de prazer. Segue a
transcrição da dor de Psiquê, segundo Marcus Quintaes.
“Do
que sofre Psiquê: Sofre de Pothos. Pothos é a palavra grega para designar este sentimento específico de desejo
nostálgico. Platão o define como: um desejo ansioso por um objeto distante. Anseio
por aquilo que não pode ser obtido: saudade de um filho perdido, um ente
querido, um amor partido, saudade do objeto perdido. Pothos significa “desejo ardente da presença da ausência”.
É algo que se quer possuir, porque não se aguenta viver sem. É isto que causa
dor em Psiquê; ela sofre de Pothos e este é o maior castigo que Eros pode
infligir a psiquê.” [3]
Ahhh
a dor do Amor!!! =]
No
final do mito, Psiquê e Eros ficam juntos e têm uma filha chamada Hedonê, a
deusa dos prazeres.
[1]
Nietzsche – A Gaia Ciência §14
[2]
Nietzsche – Humano Demasiado Humano §81
[3]
Marcus Quintaes – publicado no Facebook
créditos da imagem: Eros e Psiquê de Antonio Canova (1787)
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