Das Saturnálias

 


As Saturnálias eram festivais romanos realizados em homenagem ao deus Saturno (Cronos para os gregos) e traziam elementos que lembram o nosso Natal e também o nosso carnaval. Havia troca de presentes, festas pelas ruas de Roma e muita comida e bebidas eram servidas pelos senhores aos seus escravos que neste período, de aproximadamente 7 dias, não tinham obrigações oficiais e nem morais para com os seus senhores (interessante esta temporária inversão de papéis socias, não é? Será que isto seria algo factível hoje em dia?). Sêneca cita a comemoração das Saturnálias na sua carta de número 18 - livro II. Eram festivais muito interessantes e vale à pena pesquisar um pouco à respeito.

"Estamos em Dezembro, (...) a ostentação desregrada invadiu toda a vida coletiva." 

À princípio pode soar um pouco ranzinza uma afirmação como esta, mas Sêneca aqui refere-se aos exageros típicos cometidos neste período do ano. Vamos continuar a leitura:

"(...) que consideremos dever ser sobretudo exigentes com a nossa alma em dias festivos, e sermos os únicos a renunciar aos prazerers numa ocasião em que toda a gente se lhes entrega."

Uau! Isto é perspicaz! Em tempos de abundância de algo preparar para uma possível escassez deste mesmo algo. Mas qual o propósito disto? O principal propósito é preparar mente e corpo para situações adversas e, ao mesmo tempo, não se deixar escravizar pelos prazeres. Aqui entra um exercício estoico conhecido como a auto-privação moderada.

Imagine a seguinte situação: a festa acontencendo, pessoas comendo exageradamente, bebidas embriagando a todos, escravos e senhores sem papas na língua.... e muitas outras coisas rolando nos bastidores... O que acontece, é que quando um humano vê outros humanos se comportando de uma determinada maneira, seu cérebro primitivo age rapidamente e, para que este humano não seja excluído socialmente do grupo do qual faz parte, "o cérebro" fala baixinho ao pobre coitado: "ah! 'tá todo mundo fazendo isso, eu tb vou fazer!" Aí mora o perigo... Porque "ok" enquanto é "só" comer até enfastiar-se, mas e se o "todo mundo"estiver fazendo algo que vai contra aos seus preceitos pessoais? É preciso saber distinguir-se do rebanho, como diria Nietzsche.

"Será de fato uma prova segura de firmeza de ânimo não acompanhar, não se deixar guiar por um ambiente aliciador de concessões à volúpia. Se é indício de maior constância mantermo-nos interiamente sóbrios em meio à uma multidão ébria a ponto de vomitar, será mais moderada a nossa atitude se não nos situarmos à margem, (...) isto é, se fizermos a mesma coisa mas com uma diferente disposição de espírito."

Não que isto tenha mudado muito hoje em dia.... 2000 anos depois! (As coisas mudam de nome, mas continuam sendo o que sempre serão!*"). Então resistir àquela deliciosa refeição de Natal arrematada com um inigualável pudim de leite é uma maneira de treinar mente e corpo? 👀 É sim! 👌😇 Puxa... mas isso é duro...👀 É sim! 😁 Ok... não precisa deixar de participar de festa e deixar de apreciar a refeição natalina, mas com moderação, com "uma diferente disposição de espírito". 😉 Hmmm mas e o Natal está ainda há 3 meses terráqueos (não saturninos) de distância. Como praticar isto agora? 

"Fixa alguns dias intercalados nos quais mates a fome com alimentos exíguos e comuns, e te vistas com roupa o mais possível grosseira. (...) Leva esta vida por uns três ou quatro dias, ocasionalmente mesmo por períodos mais longos, à título não de capricho, mas de experiência."

Não é só sobre comida e vestes....Tenhamos em mente que cada um de nós tem sua particular maneira extravagante de comemoração Saturnalísticas (com toda a licença poética a que tenho direito)! Pode ser um dia sem celular, sem água quente para o banho, sem o confortável colchão para dormir, sem carro, sem busão, sem bike... enfim, sem algo que traga prazer e/ou conforto físico ou psicológico. A grande vantagem é que fazendo isto não nos tornamos escravos/dependentes de nosso próprio conforto/prazer e, de quebra, aprendemos a valorizar ainda mais os pequenos prazeres da vida. É como ir cortando o açúcar aos poucos e ao final perceber que pode-se viver bem sem adoçar tanto o café. Ah! E tem mais! Dependendo da situação, a superação do medo de ser diferente também entra no jogo aqui! É como se criássemos situações para podermos pôr em prática o desenvolvimento das quatro principais virtudes, segundo o estoicismo: sabedoria prática, temperança, justiça e coragem. Não ser dominado pelos próprios prazeres é tarefa árdua e requer muita prática até que se consiga algum resultado!

"A alma deve preparar-se para as dificuldades durante os períodos de tranquilidade, deve se fortalecer contra as injúrias da fortuna nos períodos em que ela nos sorri."

Depois do banho frio, da roupa surrada, do alimento regulado, da abstenção dos regalos da vida, pode-se chegar a duas importantes conclusões: 

"Não que seja agradável viver de água ,de polenta, de uma migalha de pão; mas é um prazer supremo conseguir sentir prazer em tais alimentos a atingir assim um estado ao abrigo de toda e qualquer injustiça da fortuna."

 E logo em seguida:

"Era então disto que eu tinha medo?"

 Bom domingo! Boas reflexões!

Renata Chinda

rechinda@gmail.com 

Bibliografia

[1] Seneca - Cartas a Lucílio - Carta 18 Livro II. (edição em portugues de Portugal, portanto algumas palavras podem soar um pouco diferente ☺)

*Além dos outdoors - Engenheiros do Hawaii

 A pintura do texto de hoje chama-se "Saturnálias" e é obra de Antoine-François Callet.

Curiosidades

O Natal como o conhecemos hoje em dia é derivado da Era Cristã. Antes disto, pode-se associar a comemoração do Natal às Saturnálias (Saturno/Cronos) e também às Brumálias (em homenagem à Baco, Dioniso para os gregos).



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