OS ESTOICOS - PARTE II - EPICTETO
Epicteto (55 d.C., Império Romano
Oriental – 135 d.C., Grécia) nasceu escravo, tendo Epafrodito, o cruel secretário
administrativo de Nero, como seu mestre. Contam os livros que Epicteto tinha um
talento intelectual incomum, o que fez com que Epafrodito o enviasse para Roma
para estudar com o filósofo estoico Gaio Musônio Rufo. Epicteto tornou-se o
mais aclamado de todos os alunos e acabou sendo libertado da escravidão. A
partir daí, ensinou a filosofia estoica em Roma até o ano 94 d.C., quando o
imperador Dominiciano, ameaçado pela crescente influência dos filósofos,
baniu-o da cidade. Epicteto, então, passou o resto de sua vida exilado na
Grécia, onde fundou uma escola filosófica. Entre seus alunos mais ilustres
estava o jovem Marco Aurélio Antonino, que mais tarde governaria o Império
Romano.
É comum a representação da figura
de Epicteto com muletas. Isto porque, em uma divergência de opiniões da qual
Epicteto não cedeu, Epafrodito torturou-o até que se quebrasse uma das
pernas...
Bom, de suas obras se conservam
o Encheiridion – o Manual de Epicteto e as Diatribes (ou Discursos),
ambos compilados por seu discípulo Lúcio Flávio Arriano. Epicteto é o autor de ensinamentos que se
equivalem aos contidos nas maiores obras de sabedoria que a civilização humana
produziu. Os Discursos podem ser
considerados a resposta do Ocidente ao Dhammapada
budista ou ao Tao Te Ching de Lao
Tzu. [1] Uma curiosidade interessante é que O Manual de Epicteto é composto de trechos selecionados dos Discursos e foi concebido de acordo com os
manuais militares da época. Por isso tem muito da simplicidade da leitura de
clássicos como A Arte da Guerra de
Sun Tzu. Na realidade, os soldados costumavam levar o Manual de Epicteto para as batalhas!!!
E o que tinha de tão importante
neste Manual, a ponto de ele ser
levado ao campo de guerra? Veja, já começa pelo título da obra: “Manual’’. É um
manual para a vida, para se viver a boa
vida! Como já conversamos no 1º texto desta série sobre filosofia estoica,
o estoicismo é uma filosofia bastante prática. Assim, o Manual de Epicteto traz
uma espécie de compilação de exercícios espirituais com o objetivo de promover
uma gradual evolução no modo de ser do sujeito, trazer uma espécie de
conhecimento consciente.
Tais exercícios constituem um
conjunto de práticas realizadas voluntariamente com o objetivo de influenciar e
transformar a si mesmo e a própria maneira de se viver. São exercícios,
contemporaneamente, chamados de ‘espirituais’ porque não envolvem apenas o
intelecto, mas também o corpo, a imaginação e a sensibilidade, abarcando todo o
psiquismo do indivíduo. [2]
Estas transformações correspondem
à representação que a filosofia estoica faz de si mesma como a “Arte do Viver”
(technē peri ton bion, ou ainda, ars vitae, ars vivendi). E, como em outras artes, o aprendizado teórico
não basta por si mesmo. É preciso prática para assimilar o que foi aprendido e
então transformar princípios teóricos em uma vida filosófica concreta.
“Aqueles que aprenderam os
princípios (theoremata), e nada mais,
estão sempre desejosos de vomitá-los o quanto antes puderem, assim como as
pessoas de estômago fraco vomitam o que acabam de comer. (...) Então, depois que tiver digerido esses
princípios, nos mostre alguma transformação em sua alma que se deva a eles.
Assim como os atletas mostram seus ombros como resultado de seus exercícios e
de sua dieta, assim como aqueles que tenham dominado uma arte podem mostrar os
resultados do que aprenderam. ” [3]
Bom, vamos então ao primeiro
capítulo do Manual de Epicteto!
“Das coisas existentes, algumas
são encargos nossos, outras não. São encargos nossos o juízo (hypolēpsis), o
impulso (hormē), o desejo (orexis), a aversão (ekklisis) – em suma: tudo quanto
seja ação nossa. Não são encargos nossos o corpo, as posses, a reputação, os
cargos públicos – em suma: tudo quanto não seja ação nossa. Por natureza, as
coisas que são encargos nossos são livres, desobstruídas, sem entraves. As que
não são encargos nossos são débeis, escravas, obstruídas, de outrem. Lembra
então que, se pensares livres as coisas escravas por natureza e tuas as de
outrem, tu te farás entraves, tu te afligirás, tu te inquietarás, censurarás
tanto os deuses como os homens. Mas se pensares teu unicamente o que é teu, e o
que é de outrem, como o é, de outrem, ninguém jamais te constrangerá, ninguém
te fará obstáculos, não censurarás ninguém, nem acusarás quem quer que seja, de
modo algum agirás constrangido, ninguém te causará dano.” [4]
Uau! Isso é um preceito de
liberdade sem igual!! Veja, segundo Epicteto, nossas angústias derivam da
tentativa de controlar o incontrolável!! Exemplo simples: pode-se pedir de
joelhos para que a Terra gire ao redor de Saturno, mas ela continuará girando
ao redor do Sol! A Natureza, o Logos, a Providência, como queira chamar, é imanente e transcendente a nós.
Não importa o quanto seja importante para o sujeito que a Terra translade
Saturno, isso não vai acontecer. E não adianta chorar, ficar angustiado, entrar
em depressão, porque nada do que se faça será capaz de alterar tal fato.
Portanto, caso o sujeito se preocupasse com tal questão pode-se dizer que seria
um grande desperdício de energia vital, um verdadeiro desperdício de tempo,
certo?! Bom, mas isso é bastante comum, veja: é o trânsito que está carregado e
eu reclamo, o vôo que atrasou e eu brigo no aeroporto, a chuva bem no feriado e
eu fico de mau humor, a pessoa que não corresponde às minhas expectativas de
afetos e eu fico triste.... Todas essas coisas, apesar de estarem fora de nosso
controle, muitas vezes nos chateiam (isso para ser menos enfático, porque às
vezes pega bem mais do que só chateação)! Então, como aprender a não se
aborrecer com essas coisas que não dependem de nós?
Bom, para exercitar este preceito
estoico, o Profº Pedro Calabrez sugere o seguinte exercício: Durante o período
de 1 mês, quando se sentir angustiado, triste, preocupado, anote em um caderno
o que está causando este sentimento. Passado este período, releia tudo o que
anotou. É comum nos darmos conta de que nos preocupamos muito mais com coisas
que estão fora de nosso controle... Além disto, este exercício contribui para
descobrir suficiência nas próprias ações e a também, muitas vezes, abrir mão dos
desejos.
“A principal tarefa na vida é
simplesmente esta: identificar e separar questões de modo que eu possa dizer
claramente quais são externas, fora do meu controle, e quais têm a ver com as
escolhas sobre as quais eu, de fato, tenho controle. (...) É sobre isso que os
filósofos devem meditar; é sobre isso que eles devem escrever todos os dias,
isso deveria ser o objeto de seus exercícios.” [4]
Assim, poupamos energia e tempo
para investir em tarefas que estão sob nosso controle! Os esforços deixam de
ser totalmente desperdiçados em críticas e/ou confrontos com outras pessoas e
ficam canalizados em tarefas que de fato podem fazer uma grande diferença em
nossas vidas. ;)
“Ok, entendi! A ideia é
bonita.... Mas é que sou impulsivo, quando vejo, já fiz! E daí fico preocupado
ou chateado muito facilmente”. Bom, o 2º exercício aqui apresentado trata
exatamente disto e deriva do seguinte trecho do Encheiridion:
“Lembre-se, não é suficiente ser
atingido ou insultado para ser prejudicado. Você deve acreditar que está sendo
prejudicado. Se alguém conseguir provocá-lo, perceba que sua mente é cúmplice
na provocação. É por isso que é essencial que não respondamos impulsivamente às
impressões; tome um momento antes de reagir e você verá que é mais fácil manter o
controle.” [5]
Aqui está o passo que nos permite
examinar de maneira racional nossas impressões: precisamos resistir ao impulso
de reagir de forma imediata às situações. Em vez disso, é mais aconselhável,
fazer uma pausa, respirar fundo e reconsiderar o ‘problema’ sem a influência
das emoções. (Aliás, já parou para pensar na diferença entre emoção e sentimento?)
O ser humano é um animal racional
e deve fazer uso benéfico da capacidade de pensar racionalmente, afinal é o que
nos distingue dos outros animais. Quando se age por impulso, usa-se o cérebro
primitivo, aquele que não raciocina, aquele que apenas foca na sobrevivência...
Bom, pensando antes de agir, aumentamos as chances de termos um melhor
resultado.
Assim é extremamente proveitoso
cultivar o hábito de examinar e testar uma provável ação futura antes de
realizá-la. Por isso a recomendação da pausa e da respiração profunda. Desta
maneira, pode-se enxergar o quadro completo e constatar qual de fato é o
problema que aflige. Uma vez feito isso, pode-se supor várias soluções
possíveis e em que cada uma resultará. Isto nos livra das famosas frases:
“Puxa, eu devia ter feito diferente”, ou ainda “Se eu tivesse feito dessa
maneira...”
Difícil parar um pouco antes de
agir? É, pode ser que seja. Estamos vivendo tempos líquidos! Tudo é muito
rápido. Precisamos responder o WhatsApp em 2 min, curtir a foto no Facebook no
instante em que foi publicada e ainda acompanhar o furacão dos EUA pelo
Twitter.... Mas podemos e temos o direito de ditar nosso próprio caminhar do
tempo. Afinal, onde está escrito que precisamos andar com o rebanho?
Esse tipo pensamento é capaz
inclusive de nos guiar quanto às metas futuras. Ao analisar as situações antes
de agirmos, nos distinguimos daqueles que participam das coisas apenas por
estas lhe parecerem interessantes ou não exigirem grande esforço. “Todos
conhecemos pessoas que imitam tudo o que parece ser novidade no momento, tudo o
que chama a atenção. Mas logo seu entusiasmo e seus esforços esmorecem e elas
abandonam seus projetos assim que as exigências aumentam”. [6]
E, por fim, o 3º e último
exercício do texto de hoje:
“Quanto a cada uma das coisas que
sucedem contigo, lembra, voltando a atenção para ti mesmo, de buscar alguma
capacidade que sirva para cada uma delas. Caso vires um belo homem ou uma bela
mulher, descobrirás para isso a capacidade do autodomínio. Caso uma tarefa
extenuante se apresente, descobrirás a perseverança. Caso a injúria, a
paciência. Habituando-se deste modo, as representações não te arrebatarão.” [7]
Cada dificuldade é na verdade uma
oportunidade de aprendizado. Se a tarefa longa e cansativa se apresenta, se
apresenta também a oportunidade de desenvolvimento da perseverança. Se a
injúria se fez presente, é uma excelente oportunidade de se aprimorar a
paciência. Se o momento é de dor ou fraqueza, pode-se usar a capacidade da
resistência. Quando há algum acontecimento imprevisto, vale voltar-se para
dentro, para o íntimo, e buscar os recursos dos quais dispomos para lidar com
tal fato. Aqui cabe muito bem uma citação de Nietzsche que nos diz que o caos
também é matéria-prima:
“É preciso ter o caos dentro de
si para dar à luz uma estrela cintilante”. [8]
Deste modo, com o passar do tempo
e com a prática de associar o recurso interno a cada incidente, por assim
dizer, estaremos exercitando nossas virtudes e nos tornando um ser humano melhor
a cada dia. Quem sabe, até mesmo tendo a oportunidade de nos depararmos com
dimensões desconhecidas e inesperadas de nós próprios!
Acredito que, depois destes
exemplos, ficou claro o porquê os soldados levavam O Manual de Epicteto para a frente de batalha!
Bom, o texto de hoje trouxe
apenas 3 práticas de Epicteto para meditações. Claro que temos muitas mais!!
Apenas a título de citação, temos ainda:
·
O exercício de examinar nossas impressões (nada
é bom ou ruim)
·
O exercício de nos lembrar constantemente da transiência
das coisas
·
O exercício de “outrar-se” (como diria Clarice
Lispector) para analisar melhor os fatos
·
O exercício de falar pouco, mas falar bem
·
E para finalizar as citações: memento mori - lembre-se de que você é
mortal.
A filosofia estoica é, de fato,
muito rica, muito prática e extremamente atual. É completamente aplicável mesmo
nos dias de hoje. Tanto que estamos iniciando a #stoicweek2017 !! 😏 A semana
estoica tem início amanhã, dia 16/10, é totalmente on-line e gratuita. Há
cursos diários sobre meditações práticas e ainda a oportunidade de conhecer e
conversar com pessoas de todo o mundo que praticam o estoicismo como filosofia
de vida. Interessou? Clica aqui e se inscreve.
Espero que a leitura tenha sido
proveitosa e motive novos pensamentos e ações ao longo desta semana!! Como
diria Epicteto:
“Primeiro, diga a si mesmo o que
você deveria ser; depois, faça o que tem de fazer.”
Boa semana e até o próximo texto! 🙋
Renata Chinda
CURIOSIDADES
Download de Livros
[1] Sharon Lebell; Epicteto - A arte
de viver; 2000
[2] Pierre Hadot – Exercícios
espirituais e filosofia antiga, 2014
[3] Epicteto – Diatribes III, 21
[4] Manual de Epicteto §1
[5] Epicteto – Diatribes III, 20
[6] Sharon Lebell; Epicteto - A
arte de viver; “Examine o que vem primeiro, depois o que vem em seguida, e só
então comece a agir”
[7] Manual de Epicteto §10
[8] Nietzsche – Assim falava
Zaratustra
Comentários
Postar um comentário