EPICURO
“Que ninguém hesite em se dedicar à filosofia enquanto jovem, nem se
canse de fazê-lo depois de velho, porque ninguém jamais é demasiado jovem ou
demasiado velho para alcançar a saúde do espírito. Quem afirma que a hora de
dedicar-se à filosofia ainda não chegou, ou que ela já passou, é como se
dissesse que ainda não chegou ou que já passou a hora de ser feliz. Desse modo,
a filosofia é útil tanto ao jovem quanto ao velho: para quem está envelhecendo
sentir-se rejuvenescer através da grata recordação das coisas que já se foram,
e para o jovem poder envelhecer sem sentir medo das coisas que estão por vir; é
necessário, portanto, cuidar das coisas que trazem a felicidade, já que,
estando esta presente, tudo temos e, sem ela, tudo fazemos para alcançá-la.”
[1]
O trecho acima é o primeiro parágrafo da Carta de Epicuro a Meneceu, também conhecida como Carta sobre a Felicidade e inaugura aqui
no Zeitgeist uma série de textos sobre alguns dos filósofos (filosofias) que nos inspiram: os gregos antigos. Claro, sempre trazendo um resumo do conteúdo com vistas à aplicação prática, porque filosofia só funciona quando aplicamos no dia-a-dia. Assim, a primeira filosofia aqui tratada será a
filosofia de Epicuro: o epicurismo.
Epicuro nasceu em Samos, na Grécia, em 341 a.C. e é um dos grandes
representantes da época helênica. Por se tratar de um filósofo hedonista foi
muito mal visto pelos platônicos e cristãos. Seus escritos, mais de 300 livros
segundo seus discípulos, se perderam no tempo. Não houve muita preocupação em
se preservar uma filosofia mal quista, por ser convenientemente mal
interpretada.
Bom, mas afinal o que é uma filosofia hedonista? Lembra-se de Hedonê,
a filha de Psiquê e Eros? Pois bem, ela é a personificação do prazer. Assim,
uma filosofia hedonista é aquela que afirma ser o prazer o supremo bem da vida
humana. Hmmmm. Mas veja, existem diferentes tipos de hedonismo, uma vez que há
diferentes concepções de “prazer”. O hedonismo filosófico clássico, antecessor
a Epicuro, realmente pregava a busca pelo prazer corpóreo e sem limites.
Entenda-se prazer corpóreo não só o sexual, mas também o alimentar, o
olfativo... é uma clássica filosofia grega de excessos. O hedonismo
epicurista, por sua vez, determina que o prazer para ser um bem
precisa de moderação. Para Epicuro o prazer reside na ética da
simplicidade, ou seja, é o prazer com as coisas simples. Então, vamos lá!
O propósito da filosofia de Epicuro era atingir a felicidade
(eudaimonia), muito mais baseada no indivíduo do que na coletividade. A
felicidade aqui é definida como o estado de imperturbabilidade da alma
(ataraxia), a ausência de dor física (aponia) e a capacidade de
auto-suficiência (autarquia).
Para discutir sua filosofia, Epicuro convidava as pessoas a
participarem do seu Jardim. O Jardim de Epicuro ficava na sua casa e
contava com a participação de homens, mulheres e escravos. Assim, o elitismo do
conhecimento era contestado e se inaugurava uma ética igualitária e acessível a
todos que fossem capazes de se abrir a um mundo sem superstições, dogmas ou
preconceitos. Na entrada do Jardim de Epicuro, segundo Sêneca, havia a seguinte
inscrição: “Hóspede, aqui serás feliz; o soberano bem aqui é o prazer”.
Mas, como já conversamos, o prazer aqui não é o mesmo do hedonismo
clássico.
“Para nós, prazer significa: não ter dores no âmbito físico e não
sentir falta de serenidade no âmbito da alma. Pois uma vida cheia de ventura
não é formada por uma sequência infinita de bebedeiras e banquetes”. [2]
Assim, o Epicurismo tem como base quatro fundamentos, o chamado Tetraphármakon
(em grego seria algo como os ‘quatro remédios’). O Tetraphármakon resume sua filosofia em dois
“remédios” intelectuais e dois “remédios” éticos.
1.
Não há nada
a temer quanto aos deuses
2.
Não há nada
a temer quanto à morte
3.
A dor é
suportável
4.
O prazer é
fácil de obter
“Todos aqueles, contudo, que
ainda não se contam entre os perfeitos, podem, com o auxílio deste esboço,
efetuar em pouquíssimo tempo, mesmo sem aula oral, a jornada através das
questões capitais, decisivas, para chegarem à obtenção da sua paz de alma e de
espírito” [3]
Assim, abrindo estas quatro máximas epicuristas temos o seguinte:
Epicuro não era ateu, mas se interessava pela imanência. Logo, para
ele, os assuntos divinos diziam respeito somente aos deuses e os nossos assuntos,
tão imperfeitos e demasiadamente humanos, não eram capazes de atingir os deuses.
Portanto os deuses não se ocupam de nós, não há que se temer a castigos
divinos!
Quanto à morte, ela é encarada segundo a ausência de sentidos. Assim,
quem está vivo, não tem a morte, logo não deve temê-la enquanto vive. Quem está
morto não sente mais nada, portanto a morte também não pode lhe causar mal
algum. Então não há porque temer a morte!
“Assim a morte, o mais
temível de todos os males, é para nós um nada: enquanto nós existirmos, não
existirá ela, e quando ela chegar, nada mais seremos. Desse modo, a morte não
toca nem os vivos nem os mortos, porque onde estão os primeiros não se encontra
ela, e os últimos já não existem mais.” [4]
O realismo do terceiro remédio é fantástico. Porque se há dor, não há como negá-la, porém é possível suportá-la, seja física ou emocional. Sendo o
mundo feito de prazeres e dores, para viver bem é preciso que se saiba lidar
bem com as dores. Para Epicuro a dor é um sinal do corpo indicando que uma
atitude diferente deve ser tomada. Exemplos: “Tire a mão do fogo”, diz a dor;
“Não coma mais isso”, diz o desconforto; “Não relacione-se mais com aquela
pessoa”, diz a tristeza. [5] O sábio epicurista não rejeita a dor, mas
suporta-a até que seu recado para a mudança seja compreendido e então age de
maneira a eliminar a dor!
E, por fim, os prazeres. Para Epicuro os prazeres são fáceis de se
obter, se não são fáceis, não são necessários. Assim os prazeres são divididos em naturais e necessários e classificados em três categorias. Natural seria tudo
aquilo que inclusive os animais têm necessidade, ou seja, aquilo que é intrínseco
à nossa natureza. Necessário é tudo aquilo sem o qual morremos. Assim, as três
classificações de prazer ficam:
(c) Não natural e não necessário – por exemplo: riqueza, fama, curtidas no facebook. Aqui entramos no terreno das ilusões e superstições. É tudo aquilo capaz de alienar e causar mais aflição que prazer.
(a) Natural e
necessário – por exemplo: comer, beber e dormir. Sem esses prazeres a harmonia
do nosso corpo se desfaz, são eles que permitem que o corpo continue se
afirmando na sua existência.
(b) Natural e
não necessário – por exemplo: música, arte, sexo. Aqui poderia se classificar
liricamente como sendo os prazeres de se viver, ou seja, mais do que ouvir, é
possível fazer música.(c) Não natural e não necessário – por exemplo: riqueza, fama, curtidas no facebook. Aqui entramos no terreno das ilusões e superstições. É tudo aquilo capaz de alienar e causar mais aflição que prazer.
Interessante né!? J E tem mais!
Epicuro era um filósofo atomista, isto é, via o homem como um
micro-cosmos e sendo parte de um cosmos maior e em equilíbrio. Acho que já ouvimos
isso no Ubermensch, hein... A
felicidade epicurista tem como base o equilíbrio e a harmonia, como na natureza,
e sempre na medida racional.
“Por isso eu afirmo que o prazer é a essência de um uma vida
venturosa. A ele conhecemos como nosso primeiro bem inato, por ele nos deixamos
guiar em todos os nossos anelos e abstenções, e por ele nos governamos. (...)
No princípio de tudo, porém, encontra-se a razão, o maior de nossos bens. Dela
resultam por si só todas as outras virtudes. (...) É impossível viver
prazerosamente, sem que se viva uma vida cheia de razão.” [6]
A ética epicurista baseia-se nas ações segundo a compreensão da
natureza, e não nas reações a tudo que não é natural nem necessário ao
indivíduo. Aqui pode-se incluir inclusive normas e valores sociais. Numa Grécia
de sábios elitistas, Epicuro recebia a todos em seu Jardim. Os outros grandes
filósofos dessa época iam até a Ágora para discorrer somente com os eruditos.
Mulheres e escravos sequer podiam participar. Ou seja, Epicuro não seguia o
padrão da maioria dos filósofos da sua época. É esse padrão da maioria que
depois Nietzsche chama de “rebanho” e Heráclito, muito antes, chamava de hoi poloi (os muitos). Assim o
epicurismo é também uma filosofia de imanência, de auto-suficiência,
auto-controle, auto-conhecimento. “Epicuro é um resistente ao movimento
Socrático e ao mesmo tempo é portador de uma vivacidade dionisíaca ligada à
reinterpretação da relação entre vida e moral.” [7]
Outro ponto interessante em que os pensamentos de Nietzsche e Epicuro
parecem senão convergir, mas ao menos serem paralelos, é a minimização da
influência dos deuses ou qualquer outro aspecto metafísico na existência.
“ (...) ela (a multidão) considera como providência divina tudo o que
acontece de mal para o perverso ou aquilo que beneficia o bom. A multidão
estranha tudo que possua uma natureza diferente de sua própria, e assim apenas admite
deuses que lhe sejam semelhantes.” [8]
A finitude da vida também é tema comum entre as duas filosofias. Isso
traz a importância para o momento presente e a urgência em se viver o aqui e
agora. Isso é Eterno Retorno!
“Nascemos uma única vez; uma segunda vez não nos é dada, e não
nasceremos mais por toda a eternidade. Apesar disso, adias constantemente o
instante certo e não és dono do dia vindouro. Nessa vacilação, porém,
desvanece-se a vida e muitos morrem sem jamais se terem permitido um verdadeiro
descanso.” [9]
Nietzsche fala especificamente de Epicuro neste aforismo:
“Epicuro. – Sim, orgulho-me de sentir o caráter de Epicuro
diferentemente de qualquer outro, talvez, e de fruir a felicidade vesperal da
Antiguidade em tudo que dele ouço e leio: - vejo o seu olhar que se estende por
um mar imenso e esbranquiçado, para além das falésias sobre as quais repousa o
sol, enquanto pequenos e grandes animais brincam à sua luz, seguros e
tranqüilos como essa luz e aquele mesmo olhar. Apenas um ser continuamente
sofredor pôde inventar uma tal felicidade, a felicidade de um olhar ante o qual
o mar da existência sossegou , e que agora não se farte de lhe contemplar a
superfície, essa delicada, matizada, fremente pele de mar: nunca houve uma tal
modéstia na volúpia.” [10]
No aforismo de número 200 de Além do Bem e do Mal, Nietzsche também
cita Epicuro, porém com uma conotação negativa, comparando-o à passividade do
cristianismo.
Entretanto, acredito que, se você, caro leitor, chegou até aqui no
longo texto de hoje, a melhor dica é meditar sobre o Tetraphámarkon de Epicuro,
como ele mesmo sugere a Heródoto:
“Medite sobre estas ideias dia e noite, e às ideias a elas
relacionadas. Medite sozinho e depois com alguém. E você nunca mais será
perturbado, seja acordado ou dormindo.” [11]
O epicurismo é uma filosofia extremamente simplista, quase espartana,
por assim dizer! Resumindo os tetraphármakos temos o seguinte: não temas
castigos divinos, não temas a morte, suportes a aprende com tua dor e, por fim,
não te dê prazeres em excesso para não perderes a oportunidade de sentir prazer
sempre, com as coisas simples. Afinal,
“Nada é suficiente para quem
julga o suficiente demasiadamente pouco.” [12]
Grande abraço! E até o próximo texto! 🙋
Renata Chinda
rechinda@gmail.com
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Mesmo estando um tanto quanto longo o texto de hoje, eu faço questão
de reservar um espaço para agradecer a todos que têm acompanhado o Zeitgeist e
enviado comentários, e-mails, sugestões. Isto se torna um grande incentivo para a
escrita dos textos! Fica aqui o meu Muito
Obrigada!! Espero que esta série com filosofias gregas antigas seja tão
agradável à leitura quanto nossas conversas sobre Nietzsche. =]
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CURIOSIDADES
Das obras de Epicuro restaram somente:
1) Carta a Heródoto
2) Carta a Pítocles
3) Carta a Meneceu
4) Máximas Capitais
5) Fragmentos
Infelizmente, não temos versões de todos estes em português brasileiro. Todavia, há versões em inglês e espanhol que são bastante acessíveis. Inclusive com a transcrição em grego arcaico!!
Se você tiver interesse em ler Epicuro, sugiro começar pela Carta a Meneceu. Ela é linda e bem curtinha! Está disponível aqui.
Os outros livros e textos podem ser encontrados no site Minhateca em espanhol e inglês. ;)
Textos sobre filosofia grega antiga foram por muitas vezes traduzidos do grego arcaico para o alemão pelo próprio Nietzsche... É incrível, não?! A notícia está aqui.
“No que diz respeito a filósofos gregos muito antigos, textos de pensadores clássicos da filosofia alemã, como os do próprio Nietzsche e Martin Heidegger acabam sendo os mais confiáveis, uma vez que ambos tiveram contato com os textos originais escritos no grego helênico.”
1) Carta a Heródoto
2) Carta a Pítocles
3) Carta a Meneceu
4) Máximas Capitais
5) Fragmentos
Infelizmente, não temos versões de todos estes em português brasileiro. Todavia, há versões em inglês e espanhol que são bastante acessíveis. Inclusive com a transcrição em grego arcaico!!
Se você tiver interesse em ler Epicuro, sugiro começar pela Carta a Meneceu. Ela é linda e bem curtinha! Está disponível aqui.
Os outros livros e textos podem ser encontrados no site Minhateca em espanhol e inglês. ;)
Textos sobre filosofia grega antiga foram por muitas vezes traduzidos do grego arcaico para o alemão pelo próprio Nietzsche... É incrível, não?! A notícia está aqui.
“No que diz respeito a filósofos gregos muito antigos, textos de pensadores clássicos da filosofia alemã, como os do próprio Nietzsche e Martin Heidegger acabam sendo os mais confiáveis, uma vez que ambos tiveram contato com os textos originais escritos no grego helênico.”
[1] Epicuro, Carta a Meneceu – parágrafo 1
[2] Epicuro, Carta a Meneceu
– parágrafo 15
[3] Epicuro, Carta a
Heródoto
[4] Epicuro, Carta a
Heródoto – parágrafo 66
[5] Razão Inadequada –
disponível aqui:
[6] Epicuro, Carta a Meneceu
– parágrafos 12 e 16
[7] Nietzsche e Epicuro:
Aproximações em torno da filosofia como metáfora médica.
[8] Epicuro,
Carta a Meneceu – parágrafo 3
[9] EPICURO, Pensamentos.
São Paulo: Martin Claret, 2005. Aforismo do Codex Vaticanus graec. 1950 do
século XIV, ou Gnomologium Vaticanum.
[10]
Nietzsche – A Gaia Ciência – 45
[11] Epicuro,
Carta a Heródoto
[12] EPICURO,
Pensamentos. São Paulo: Martin Claret, 2005. Aforismo do Codex Vaticanus graec.
1950 do século XIV, ou Gnomologium Vaticanum.
[13] Rocha, F. J A S,
Epicuro e Nietzsche: Filosofia para a vida
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