SCHOPENHAUER



Arthur Schopenhauer (Danzig, 1788 – Frankfurt, 1860) era filho de bem-sucedidos comerciantes alemães e a família esperava que ele seguisse a vida pelo mesmo ramo.  Assim, quando ele completou 12 anos, a família o presentou com uma viagem pela Europa para que ele se iniciasse na carreira mercantil. Ao voltar da viagem, Schopenhauer trouxe um pequeno caderno com suas anotações sobre o que presenciou ao longo dos lugares pelos quais passou: caos, sujeira, pobreza, inquietação e miséria – eram épocas de guerras pela Europa. Além disto, ele decidiu que não queria mais ser comerciante, preferia seguir a carreira acadêmica. O pai de Schopenhauer não permitiu tal mudança de rumo e em 1805 matriculou-o na Faculdade de Comércio de Hamburgo. Porém, no mesmo ano, após a morte de seu pai, Schopenhauer decidiu dedicar-se somente às atividades intelectuais. Em 1809 iniciou seus estudos em Medicina e em 1811, na Universidade de Berlim, matriculou-se em Filosofia. Em 1814, aos 26 anos (!), defendeu sua tese de doutorado: “A Quádrupla Razão do Princípio de Razão Suficiente”, no original alemão “Über die vierfache Wurzel des Satzes vom zureichenden Grunde”. Onde, apenas à título de curiosidade e de uma maneira bastante simplificada, podemos resumir da seguinte maneira:

“O princípio é a expressão da necessidade de uma razão (suficiente) ou base para todo julgamento (de um fenômeno). Qualquer um que requeira uma prova dele já assumiu que este é verdadeiro; de fato, baseia sua demanda nessa mesma suposição. Se encontra preso no círculo de exigir uma prova do direito de exigir uma prova”. [1] (Complexo, né?! Vale a (releitura)3!)

Sendo que a “Quádrupla Razão” do título seria devido às quatro formas de explicação do fenômeno:

1. Explicação por causalidade ou através de leis da física;
2. Explicação por necessidade lógica;
3. Explicação por demonstração matemática;
4. Explicação das ações, de pessoas ou animais, por seus motivos;

Nesta obra, Schopenhauer tenta estabelecer uma base para todo o tipo de saber. Como podemos ter certeza de que sabemos? Como dizer que sabemos algo e não temos apenas uma opinião?

E, assim, em 1888, aos 30 anos, Schopenhauer lança a primeira edição de sua obra magna: “O Mundo como Vontade e Representação”, no original alemão “Die Welt als Wille und Vorstellung”.

“Minha obra é um novo sistema filosófico; mas novo na inteira acepção da palavra: não apenas uma nova apresentação do que já existe, mas uma série de pensamentos inteiramente coerentes que até hoje jamais ocorreu à cabeça de um homem. O livro, que me deu o difícil trabalho de transmitir meus pensamentos de modo compreensível aos outros, é um daqueles que, segundo minha convicção, há de ser a fonte e a ocasião de uma centena de outros livros.” [2]

O Mundo como Vontade e Representação usa o Princípio de Razão Suficiente como base para a representação dos fenômenos (Se literatura fosse música, isso seria um instigante rock progressivo! =] ).

Acontece que no período de 1818 a 1842, ou seja, em 24 anos, foram vendidas apenas cerca de 250 exemplares.... Mas isso não abalou Schopenhauer. Em 1844 surge a segunda edição de O Mundo como Vontade e Representação com alguns textos extras e complementos.

É impossível e até injusto, em apenas um texto, tentar (ousar!) resumir toda a obra de Schopenhauer. Por isso, aqui, a preferência será por escolher determinados trechos da principal obra dele e analisá-los segundo o que já sabemos de Nietzsche e dos estoicos (e talvez um pouquinho de budismo e hinduísmo também). Bóralá? J

“O mundo é a minha representação: eis uma verdade que vale para cada ser vivente e cognoscitivo*, mesmo se somente o homem é capaz de acolhê-la na sua consciência reflexa e abstrata; e quando ele verdadeiramente o faz, a meditação filosófica nele penetrou”. [3] *referente ao conhecimento e aprendizado

“(...) tudo o que existe, existe para o pensamento, isto é, o universo inteiro é apenas objeto para um sujeito, percepção apenas, em relação a um sujeito que percebe. ” [4]

A ideia central aqui é simples: a realidade que vivemos é uma representação, segundo Schopenhauer. Ou seja, o mundo não passa de uma aparência. E aqui é muito bom tomar cuidado com as palavras que se usa na descrição da ideia. Porque, como diria Nietzsche, as palavras mentem. E como diria Epicteto, o que existe é a interpretação moral dos fenômenos. E como diriam hinduístas, esse é o Véu de Maya (ilusão), e já conversamos rapidamente sobre ele no texto Apolíneo e Dionisíaco. Ah! Os egípcios tinham ainda outro nome para isto, eles chamavam de véu de Ísis. J

Todos esses diferentes modos de nominar um mesmo fato têm em comum a ideia de que a mais profunda “verdade”, ou realidade, seria o que está por detrás da nossa concepção individualista das coisas. Aqui a ilusão se faz presente na nossa incapacidade de ver as coisas como são em seu próprio nível de realidade. O que somos capazes de assimilar é somente o que nossos sentidos humanos podem nos proporcionar. E aí chegamos à conclusão de que cada um tem a sua própria concepção de mundo porque cada um tem suas próprias, únicas e singulares experiências. Exemplo simples (e até um tanto descarado): uma pessoa daltônica não tem a mesma concepção de verde e vermelho que uma pessoa que é capaz de exercer toda a capacidade visual da espécie humana. Agora aplique esta ideia para experiências que resultam na formação psíquica de cada um. Interessante não?!

Ok!? Então já descobrimos meio título de “O Mundo como Vontade e Representação”. E a “Vontade”, vem de onde?

Bom, para Schopenhauer todas as representações humanas têm um fundamento, têm uma origem inconsciente, irracional. Aqui pode-se lembrar da Vontade de Potência de Nietzsche.

Porém, vale a seguinte ressalva; “em Schopenhauer apenas Vontade: cega, insaciável, inquieta. A coisa-em-si de Kant, a resposta para todos os enigmas. A Vontade é auto-discórdia, uma fome eterna que alimenta-se de si mesma. Como nunca pode ser satisfeita, ela é a causa de toda a dor; como não tem finalidade, ela nunca encontra a paz. Nietzsche se apropria deste conceito tornando-o múltiplo: Vontade De Potência é a potência que quer a si mesma, é uma vontade de lutar, combater, é a definição do guerreiro e do artista”. [6]

“Falar em vontade de viver é um pleonasmo. A Vontade é a própria essência da vida! ” [3]

Aqui também vale citar outros dois trechos de Schopenhauer:

 “A consciência é a mera superfície de nossa mente, da qual, como da terra, não conhecemos o interior, mas apenas a crosta. ” [4]

“A Vontade é um cego robusto que carrega um aleijado que enxerga”.  [3]

E aí é inevitável a lembrança de Es denkt in mir – algo pensa em mim. Além de Nietzsche, Freud e Jung também passaram pelos livros de Schopenhauer. O dualismo consciente/inconsciente tem papel fundamental na obra do Cavaleiro Solitário (como Nietzsche costumava se referir a Schopenhauer). Na citação acima, o cego robusto é a Vontade, enquanto que o aleijado que enxerga, é a consciência objetiva (💃) .

Para Schopenhauer, a Vontade é o único elemento permanente e invariável. Seria como que o princípio fundamental da natureza, independente da representação e não submisso à razão. Assim, a Vontade se manifesta no desejo cego e irracional de viver e, mais que isso, de viver na máxima plenitude. Essa Vontade, segundo Schopenhauer, não é individual, mas sim da espécie ou mesmo do cosmo. Seria uma espécie de expressão fenomenológica do ser humano, ao mesmo tempo força motriz da existência e razão de um sofrimento intrínseco à vida.

Força motriz da existência quando se pensa que é a Vontade que nos leva a procurar sempre mais: novos projetos, novos horizontes, novas alegrias... Razão de um sofrimento intrínseco porque uma vez que o desejo é satisfeito, o contentamento é temporário, sendo extinto logo depois de ser alcançado e dando lugar a uma nova necessidade.

“A satisfação da vontade é como a esmola que damos ao mendigo. Ele é satisfeito naquele momento, ele sobrevive mais um dia, mas a esmola não o tira daquela condição. ” [4]

“Quem deseja sofre. Quem vive, deseja. A vida é dor. Viver é sofrer. ” [5]

Ok, então se para Schopenhauer a Vida é sofrimento por ser função de uma Vontade que nunca poder ser completamente satisfeita, poderíamos pensar num mundo ideal, onde todos os desejos são realizados. Daí não haveria mais sofrimento, certo?! Errado! Segundo Schopenhauer um lugar como este levaria todos os seus habitantes a morrerem de tédio!!!
Conclusão: mesmo com a satisfação plena dos desejos, a condição humana é sofrer.

“A vida é um negócio cujo retorno é insuficiente para cobrir os seus custos. ” [3]

“A vida humana passa-se toda em querer e em adquirir. O desejo, por sua natureza, é dor. Sua realização traz rapidamente a saciedade; o objetivo não era mais que uma miragem. A posse mata todo o encanto. O desejo ou a necessidade se apresentam sob nova forma. Se não é o nada, é o vazio, é o tédio que chega. ”[4]

Deste modo, Vontade e Representação comandam o drama da vida humana.  E o homem está condicionado a reincidir nos mesmos erros até que se destrua essa Vontade e supere a Representação. [7]

Pessimista? Bom, essa é a fama de Schopenhauer!!! Mas o mais interessante é o que vem depois disto. Se o sofrimento é uma realidade e a satisfação da vontade é impossível, então como mitigar o sofrimento, como ser menos infeliz? Simples: nos livrando do “querer”, aprendendo a controlar a Vontade, saindo deste ciclo de desejar o que não se tem, conquistar e entendiar-se novamente.

E é aqui que obra de Schopenhauer se aproxima muito do budismo. “O samsara, para os budistas, é uma vida de sofrimento comandada pela ilusão e pelo desejo, que são causas da dor e da angústia. A superação disso tudo somente se dá quando o homem consegue vencer a avidez pelo mundo material e chega num estado em que a vida não é comandada pelo desejo e pelas ilusões causadas pela mente: o nirvana. ” [7]

Bom, se pararmos um pouquinho para relembrar o que já conversamos em textos anteriores no Zeitgeist, vamos encontrar algumas semelhanças também com os estoicos. Veja, querer o que não se pode ter resulta em sofrimento também para Sêneca, Epicteto e Marco Aurélio. Assim como não se deixar levar pelas emoções e representações que nossa mente cria. Aprender a controlar e medir nossas ações de maneira mais consciente é o objetivo de muitos exercícios estoicos.

Entretanto, quando se compara a negação da Vontade, expressa por Schopenhauer, com as ideias de Nietzsche, percebe-se claramente a divergência de opiniões. Nietzsche classifica a negação da vida, negação da Vontade, como uma espécie de Niilismo, o niilismo passivo. E, ao mesmo tempo, para superá-lo propõe o niilismo ativo, como ponto de partida.

A dor, para Nietzsche, é algo necessário à vida. Somente com a dor pode-se crescer, evoluir. “Da escola de Guerra da vida: o que não me mata, me fortalece!” [8] E assim também é para os estoicos. Amor fati: devemos amar o que nos acontece. Porque “Tudo o que me trazem as tuas estações, é para mim fruto, ó Natureza.” [9]

E com relação aos budistas, Nietzsche inclusive expressa um elogio, algo raro na sua leitura:

“O budismo é uma religião para homens tardios, para raças bondosas, suaves, que se tornaram super espirituais, que sentem dor com muita facilidade (ainda falta muito para que a Europa esteja madura para ele) (…) o budismo é uma religião para o fim e para o cansaço da civilização”. [10]

Para Nietzsche o budismo seria como que o primeiro passo para a transvaloração dos valores.

Ainda poderíamos citar aqui o capítulo de O Mundo como Vontade e Representação no qual Schopenhauer dedica um estudo aos estoicos e faz uma maravilhosa sequência de ideias sobre os pensamentos de Sêneca, Epicteto e Marco Aurélio. Poderíamos também conversar sobre as inúmeras citações dos Vedas, as escrituras sagradas do hinduísmo. Ou ainda sobre a música como forma perfeita de expressão da Vontade.

Mas hoje ficamos por aqui. E com a certeza de que foi feito o melhor possível para uma breve introdução da filosofia de Schopenhauer e sua influência em Nietzsche.

Quem tiver interesse em conhecer um pouco mais a respeito deste filósofo, pode consultar a biblioteca do Zeitgeist aqui e ler os vários títulos disponíveis.

Até o próximo texto! 🙋

Renata Chinda

[1] Schopenhauer - A Quádrupla Razão do Princípio de Razão Suficiente; 1814
[2] Schopenhauer – Gesammelte Briefe. Organização de A. Hubscher. Bonn: Bouvier; 1987.
[3] Schopenhauer – O Mundo como Vontade e Representação – Complementos ao livro I – Tomo II –Capítulo I. Tradução de Eduardo Ribeiro da Fonseca.
[4] Schopenhauer – O Mundo como Vontade e Representação – Livro I – Tradução de M. F. Sá Correia
[5] pequeno
[6] Razão Inadequada – disponível aqui
[7] Budismo digital – disponível aqui
[8] Nietzsche – Ecce Hommo
[9] M. Aurélio, “Meditações,” em Livro IV. XXIII, p. 37
[10] Nietzsche – O Anticristo, aforismo 22


Comentários

  1. A filosofia não visa a assegurar qualquer coisa externa ao homem. Isso seria admitir algo que está além de seu próprio objeto. Pois assim como o material do carpinteiro é a madeira, e o do estatuário é o bronze, a matéria-prima da arte de viver é a própria vida de cada pessoa.
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    1. "A Arte de Viver" de Epicteto!! Lindo esse trecho! Os estoicos são fantásticos com a filosofia aplicada! Obrigada pelo comentário, Cintia!

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  2. Na verdade, o cego robusto é a Vontade, e o aleijado é a consciência objetiva.

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