6000 pés além do homem e do tempo
“Naquele dia eu atravessei as florestas junto ao lago de Silvaplana; próximo a um bloco poderoso, que se elevava para o alto em forma de pirâmide, não muito longe de Surlei. Foi então que me veio esse pensamento... se eu volto um par de meses no tempo antes desse dia, eu encontro, como que um prenúncio, uma mudança repentina e profundamente decisiva no meu gosto, sobretudo no que diz respeito à música. Talvez a gente tenha de colocar o Zaratustra inteiro na conta da música.” [1]
O trecho acima citado é Nietzsche descrevendo quando surgiu sua inspiração para a escrita de “Assim falou Zaratustra”. Ele conta que esta obra foi escrita em meio a problemas de saúde, num inverno frio e chuvoso acima das medidas - em um albergue.
“ (a situação) oferecia - quase em tudo - exatamente o contrário daquilo que seria desejável. Apesar disso, e quase provando a minha sentença de que tudo aquilo que é decisivo nasce ‘apesar de tudo’, o meu Zaratustra nasceu sob esse inverno e sob o caráter desfavorável dessas circunstâncias” [1]
E aqui é impossível não lembrar de um trecho de “O livro dos Prazeres” de Clarice Lispector.
“Uma das coisas que aprendi é que se deve viver apesar de. Apesar de, se deve comer. Apesar de, se deve amar. Apesar de, se deve morrer. Inclusive muitas vezes é o próprio ‘apesar de’ que nos empurra para a frente. Foi o ‘apesar de’ que me deu uma angústia que insatisfeita foi a criadora de minha própria vida.” [2]
Conclusão: “a dor não serve de objeção contra a vida.” [1] E neste ponto entende-se dor como todos os fatores que poderiam se opor para se efetivar uma determinada ação. Inclusive o mau tempo na hora de sair de casa ou simplesmente levantar da cama. :) Mas, voltando à escrita de Zaratustra, hoje Zeitgeist esta poético e decidiu conversar sobre a inspiração. =]
“No sentido que, de repente, com uma seriedade e uma fineza indizíveis, algo se torna visível, audível, algo que é capaz de sacudir e modificar uma pessoa no mais profundo de seu ser, descreve de maneira simples a situação.” [3]
Simples?! Só se for para Nietzsche! :) Se formos buscar no mais refinado, completo, moderno e acessado dicionário - também conhecido como Google - teremos pelo menos 5 definições diferentes.
Sabe-se que “inspiração” vem de “inspirar”, ou seja, soprar o ar. Mas vamos pensar no sentido não biológico ou mesmo teológico. Vamos considerar aqui o sentido de um pensamento ou ideia que surge e nos instiga a um objetivo, ou seja, INSPIRA(AÇĀO).
Mas neste ponto também temos de parar um pouco para falar sobre Espinosa e sua "Teoria Geral da Definição", afinal, “quem sabe, faz”! E como nem sempre a razão conhece a causa (basta lembrar da metafísica da matemática) somos instigados a uma maneira poética de tentar descrever a inspiração.
“É um estar fora de si completo, com a consciência mais distintiva de um sem número de tremores e transbordamentos finíssimos, que são sentidos até os dedos dos pés; uma profundidade venturosa, na qual o mais dolorido e o mais sombrio não têm efeito de antítese, mas sim de condição, de desafio, como se fosse uma cor necessária no interior de uma tal abundância de luz; um instinto de relações rítmicas, que cobre vastos espaços.” [3]
E é assim que Nietzsche descreve sua inspiração na escrita de Zaratustra. Lindo, né?! :) ele diz ainda que a concepção desta obra o levou a um estado perigosamente saudável no qual havia mais coragem do que a própria prudência recomenda.
Es denkt in mir - algo pensa em mim. Passa lá relembrar o texto. Neste ponto podemos citar a “coisa em si” de Espinosa e o “Selbst” de Jung.
Ok?! Mas e cadê o lado prático de toda essa poesia? Simples! Está lá no início do texto! Na primeira citação do texto de hoje, Nietzsche nos fala que, no período que antecedeu a escrita de Zaratustra, ele sentiu uma grande mudança em seu gosto pessoal, em especial no tocante à música. Atribui, inclusive, o nascimento de Zaratustra à música. É como se, sensivelmente, a música fosse capaz de despertar toda essa potência inspiradora.
“(neste período) foi escrita aquela canção solitária, a canção mais solitária que jamais foi escrita, a Canção da Noite; naquela época sempre me rondava uma melodia de tristeza indizível, cujo refrão eu voltei a reencontrar nas palavras ‘morto de imortalidade’”. [4]
A Canção da Noite faz parte de “Assim falava Zaratustra” e encontra-se nas Curiosidades do texto de hoje. Não vamos discuti-la aqui, mas “morto de imortalidade” pode ser esclarecido com outra citação:
“A gente paga caro por ser imortal: morre-se mais de uma vez durante a vida por causa disso.” [5]
Isto é, niilismo, negação da vida em prol de uma suposta vida eterna (imortalidade) após a morte. Em “A Genealogia da Moral” já conversamos sobre isso.
Mas “deixemos o poeta de lado: talvez inclusive, jamais tenha sido feito algo à partir de uma tal abundância de forças”. [6]
Então, “qual é a língua que um espírito desses haverá de falar, quando falar consigo mesmo? A língua do ditirambo (...) de uma Ventura tão esmeráldica, de uma suavidade tão divina!” [7]
Ahhh Como falar racionalmente sobre a inspiração?? Destas tarefas dionisíacas a razão não dá conta... É preciso arte! É preciso tudo aquilo que, de certa forma, é sentido e transcrito indizivelmente.
“E como eu suportaria ser homem, se o homem não fosse também poeta e adivinhador de enigmas e redentor do próprio destino?” [8]
E nós? Como percebemos nossa INSPIRA(AÇÃO)? Às vezes é bom parar um pouco para apreciar e sentir as sutilezas que a Natureza nos proporciona dia-a-dia. Cada pôr do Sol é único! E ainda, uma vez inspirados a agir, o que motiva nossa ação?
Boas reflexões e boa semana
Até o próximo texto 🙏
Renata Chinda
rechinda@gmail.com
CURIOSIDADES
(1) Até mesmo o silêncio pode ser inspirador. E, levando em consideração que, de certa maneira, além das nossas escolhas, o meio social no qual estamos inseridos também é capaz nos influenciar, temos que um mesmo tema pode ser inspirador na mesma arte de maneiras diferente para diferentes pessoas. Exemplo:
4’33" de John Cage e The Sound of Silence de Simon e Garfunkel
Mesmo tema, pontos de vista diferentes: perspectivismo!! Mas isso é assunto pra um próximo texto! :)
(2) “6000 pés além do homem e do tempo” é a anotação que Nietzsche fez na página de seu caderno no qual iniciou a escrita de Zaratustra. Foi, por assim dizer, a sua primeira ação inspirada para esta obra! ☺️
(3) A Canção da Noite
Assim Falava Zaratustra - - Segunda parte - p162 do livro da Biblioteca do Zeitgeist
REFERÊNCIAS
[1] Nietzsche - Ecce Homo - Assim Falou Zaratustra - aforismo 1
[2] Clarice Lispector - O Livro dos Prazeres - p.26
[3] Nietzsche - Ecce Homo - Assim Falou Zaratustra - aforismo 3
[4] Nietzsche - Ecce Homo - Assim Falou Zaratustra - aforismo 4
[5] Nietzsche - Ecce Homo - Assim Falou Zaratustra - aforismo 5
[6] Nietzsche - Ecce Homo - Assim Falou Zaratustra - aforismo 6
[7] Nietzsche - Ecce Homo - Assim Falou Zaratustra - aforismo 7
[8] Nietzsche - Ecce Homo - Assim Falou Zaratustra - aforismo 8
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