PERSPECTIVISMO




Imagine uma caixa fechada. Dentro desta caixa coloquemos um gato e um frasco com veneno, sendo que o frasco tem 50% de chances de ser quebrado. Se o frasco for quebrado, o veneno é liberado e o gato morre. Até aí a ideia é simples. Agora pense, antes de abrir a caixa você saberia dizer se o gato está vivo ou morto? Segundo o físico austríaco, criador deste experimento mental, Erwin Schrödinger, antes de abrirmos a caixa o gato estaria vivo-morto, ou seja, simultaneamente vivo e morto. 😶 Só saberíamos, de fato, se o gato está vivo ou morto quando abríssemos a caixa, mas se isso fosse feito, alteraríamos a possibilidade de o gato estar vivo ou morto. Complexo? É uma ilustração hipotética da mecânica quântica aplicada a um mundo macroscópico na tentativa de mostrar o papel da consciência na determinação do que seria o nosso “mundo real”. Antes de abrir a caixa o gato estaria vivo e morto ao mesmo tempo porque sem a presença do observador, haveria apenas uma superposição de todos os estados possíveis ao mesmo tempo. O estado de superposição não pode ser observado. Na Interpretação de Copenhage um sistema pára a sobreposição de estados e fixa-se num ou noutro quando a observação acontece. É como se o observador fosse, indiretamente, o responsável pela morte ou sobrevivência do gato. Interessante né?! É uma das possíveis visões diferentes do mundo determinístico no qual estamos intelectualmente inseridos. É a física quântica sobrepondo-se à física clássica. 😎

Aqui citamos apenas uma das teoria, mas há bem mais! Esse campo da física é muito rico, muito novo e acaba por tratar de temas filosóficos também: objetividade, relativismo, determinismo, previsibilidade... Será que o que observamos é o real? O que é o “real”? Aqui entra o tema do texto de hoje: perspectivismo. O conceito de perspectivismo veio de Leibniz, mas o principal desenvolvedor foi Nietzsche. Basicamente a ideia reside no fato de que diferentes indivíduos percebem a realidade de maneiras diferentes. Assim sendo, não há verdades absolutas, mas sempre intepretações dos fatos. Hmmmm Já ouvimos isso por aqui antes, vale relembrar “AGenealogia da Moral”, “Epicteto” e também “Vontade de Verdade”. E aí voltamos ao: 

“Uma Verdade proporcional à medida humana” [1]

Em Sobre a Verdade e a Mentira no Sentido Extra-Moral, Nietzsche nos faz pensar na impossibilidade da correspondência exata do devir do “real” e a pluralidade de perspectivas, pois o homem soberbo e centrado em si mesmo, no uso de seu intelecto, custa a aceitar que outros seres percebam o mundo diferentemente dele. [2]

“Ele é humano, e somente seu possuidor e genitor (do intelecto) o toma tão pateticamente, como se os gonzos girassem nele. Mas se pudéssemos entender-nos com a mosca, perceberíamos então que também ela bóia no ar com esse pathos e sente em si o centro voante deste mundo.” [3]

Mas e se quiséssemos averiguar qual das percepções é a mais exata: a nossa ou a da mosca? Bom, isso seria como desejar o absurdo! Cada um tem sua própria percepção da realidade: perspectivismo! Exemplo: Interestellar, da Paramount e Warner. Se existisse uma consciência capaz de sentir o tempo ao contrário ou mesmo interagir com o tempo da mesma forma que o ser humano interage com as três dimensões, essa consciência teria uma visão de mundo completamente diferente da nossa. É como se alguém que só consegue perceber as coisas em duas dimensões fosse colocado num mundo em três dimensões. Essa pessoa, apesar das possibilidades ao seu redor, enxergaria o mundo conforme sua limitação...

E assim temos nossa “realidade”, nossa “verdade proporcional à medida humana”. O que a gente acha que é realidade, é só uma perspectiva humana do real. Então, se unirmos as ideias de que a realidade depende de quem a observa e de que a linguagem não é capaz de apreender o fluxo contínuo do devir, temos que a configuração de tudo o que há se dá sempre através de uma relação interpretativa sujeito/objeto.

“Existe apenas uma visão perspectiva, apenas um ‘conhecer’ perspectivo; e quanto mais afetos permitirmos falar sobre uma coisa, quanto mais olhos, diferentes olhos, soubermos utilizar para essa coisa, tanto mais completo será nosso ‘conceito’ dela, nossa ‘objetividade’”. [4]

Nietzsche é incisivo ao afirmar que todo pensamento parte de um ponto de vista parcial e específico e que nenhum “conhecimento” pode dar conta de toda a experiência. Um conhecimento que se sabe incompleto, por ser perspectivo, é forçado a aceitar a existência de outras perspectivas. Assim, a busca pelo maior número de diferentes pontos de vista enrique a concepção dos fatos.

“É preciso saber utilizar em prol do conhecimento a diversidade de perspectivas e interpretações afetivas.” [4]

Influenciados por esse pensamento nietzschiano temos Ortega y Gasset e Deleuze. E aqui cabe uma bela citação de Deleuze:

“Não existe sequer um acontecimento, um fenômeno, uma palavra, nem um pensamento cujo sentido não seja múltiplo. Uma coisa é ora isto, ora aquilo, ora algo de mais complicado segundo as forças que dela se apoderam” [5]

Assim, é a interpretação que confere força, que confere sentido a algo. Sendo desta maneira, Nietzsche nos diz o seguinte:

“Não buscar o sentido nas coisas: mas lhe impor!” [6]

Puxa, que enorme lição! Veja: as coisas acontecem, os fatos se consumam, nossa visão perspectivista é limitada e, em conclusão, como será que estamos interpretando tudo isso? Afinal,

“Onde está a minha pupila, não está nenhuma outra.” [7]

Aí, fica evidente que a interpretação dos fatos que nos acontecem depende única e exclusivamente da experiência de cada um de nós. Podemos lembrar da comparação entre as músicas de Simon e Garfunkel e Jonh Cage apresentados nas Curiosidades do texto da semana passada.

E, saindo um pouco do pensamento individualista e pensando de maneira mais ampla: será que a ciência é objetiva ou é uma construção sócio-culturalmente negociada? Um cientista ateu interpretaria os resultados de seus experimentos da mesma maneira que um cientista fervorosamente religioso? (sugestão de pesquisa:  a tese de Forman) 

Boa semana e boas reflexões! 🙋

Renata Chinda
rechinda@gmail.com

[1] Empédocles – Sobre a Natureza
[2] Jairo de Souza Rocha - Theoria – revista eletrônica de filosofia – Vol 04 – N 09 – ano 2012
[3] Nietzsche – Sobre a Verdade e a Mentira no Sentido Extra-Moral
[4] Nietzsche – A Genealogia da Moral, III, aforismo 12
[5] Deleuze – Nietzsche et la philosophie, p4
[6] Nietzsche – Fragmentos Póstumos; 12 (6)
[7] Ortega y Gasset

CURIOSIDADES

Além do famoso experimento do gato de Schrödinger, temos outro clássico experimento recorrente quando se discute mecânica quântica: o experimento de Young. Este experimento diz respeito à interferência e difração da luz. E quando se trabalha na escala da mecânica quântica, a “realidade” começa a depender da medição....
Vale também lembrar do chamado “misticismo quântico”: será que a mente humana influencia na criação do mundo físico? O misticismo quântico se consolidou na era hippie, no norte da Califórnia. Em Berkeley havia um grupo de cientistas que estudavam o Teorema de Bell e a possibilidade de telepatia. Esse grupo, formado por Sarfatti, Herbert, Sirag e Wolf foram os inspiradores do filme Ghostbusters de 1984.
Quem quiser ler um pouquinho mais sobre esse tema, pode acessar uma excelente apresentação do Prof Osvaldo Pessoa Jr do Departamento de Filosofia da USP. Clique aqui.





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