Como alguém se torna o que é




“Ecce homo, Como alguém se torna o que é” - no original latim/alemão “Ecce Homo, Wie man wird, was man ist” – escrito em 1888 e publicado em 1908, é a autobiografia de Nietzsche e também sua última obra. Segundo o próprio autor, esta obra foi escrita para que ele não fosse mal interpretado ou confundido.

“Por exemplo... eu não sou, nem de longe, um bicho-papão, um monstro moral – eu inclusive sou uma natureza contrária a esse tipo de gente que até hoje foi venerada como virtuosa. Cá entre nós, parece-me que é exatamente isso que me deixa cheio de orgulho. Eu sou um aprendiz do filósofo Dionisio, e faço gosto antes em ser um sátiro do que um santo. Mas leiam esta minha obra...” [1]


“... ele (este livro) foi feito para que não se cometam disparates em relação a mim.” [2]


Ironicamente, esta mesma obra é interpretada de várias maneiras. Há quem veja um egocentrismo exacerbado em Ecce homo, há que argumente que na fase da escrita Nietzsche já estava beirando o colapso mental e há quem, incluindo nós aqui do Zeitgeist, admire as ideias e a escrita poética da obra. 😃 De todo modo, caro leitor, para se ter uma opinião bem formada e não ficar sujeito a opiniões alheias, recomendamos a leitura de “Como alguém se torna o que é”.  Por hoje, vamos apenas dar uma passeada por dois ou três capítulos do livro, começando pelo prólogo:


“Quem sabe respirar o ar das minhas obras, sabe que ele é um ar das alturas, um ar vigoroso. A gente tem de ter sido feito para ele, caso contrário não é nenhum pouco insignificante o perigo de se resfriar no contato com ele. (...) Quantas coisas a gente não sente abaixo da gente! ” [3]


Pretensioso? Pedante? Não! Assumir o que se é, definitivamente é coragem que poucos têm. O que acontece é que vivemos num mundo onde não ser “humilde” e “modesto” e se reconhecer como realmente bom, competente ou habilidoso em determinados aspectos da vida, é algo considerado presunção. Um exemplo rápido: “Você fez um ótimo trabalho!” e a resposta automática e educadamente proferida é: “Imagina. Nem foi tanto. Poderia ter ficado mais acertado aqui e ali, mas eu fiz o melhor que pude”.

“É a autodestruição convertida em signo de valor absoluto, em ‘obrigação’, em ‘santidade’, em ‘divindade’ no ser humano.” [2]


Isso é transvaloração dos valores! Ser habilidoso em algo é louvável! E assumir isto, no meio moral no qual estamos inseridos, é um ato de coragem. Já conversamos sobre este tema em vários textos do Zeitgeist (Amor Fati, A Genealogia da moral, Além do bem e do mal) se quiser relembrar, passa lá dar uma olhada. Resumindo:

"Não existem fenômenos morais, mas a interpretação moral dos fenômenos." [5] 


E daí surge outra ideia de Nietzsche.


“Um dia haverão de unir ao meu nome a lembrança de algo monstruoso – uma crise como jamais houve na Terra, na mais profunda colisão de consciência, em uma decisão evocada contra tudo aquilo que até então havia sido acreditado, reivindicado, santificado... Eu não sou um homem, eu sou uma dinamite.” [2]

Aqui Nietsche fala justamente do momento no qual suas obras começarem a ter o reconhecimento merecido, uma vez que ele não tinha público na sua época. E quando isso aconteceria? Bom quando descobrissem que a mentira até hoje foi chamada de verdade. Justamente a transvaloração dos valores! Quando a sociedade se desse conta de que está assentada em uma base de moral de escravo e que foi doutrinada para ser assim. Afinal, adestramento garante controle!


“E com tudo isso sou também, necessariamente, o homem da fatalidade. Pois se a verdade entra em luta com a mentira de milênios, haveremos de ter abalos tremendos, uma convulsão de terremotos, uma transposição de montanhas e vales, conforme jamais sequer foi sonhada. Estaremos completamente envolvidos em um guerra de espíritos.” [2]

A guerra de espíritos decorrente desta descoberta não é entre povos, Estados ou religiões, mas entre naturezas fracas e naturezas fortes, ou seja, entre a moral de escravo e a moral de senhor. E aqui temos um exemplo 20th Century Fox: Fight Club – O Clube da Luta, lançado em 1999. Quem já assistiu o filme deve lembrar de Jack e de Tyler Durden, interpretado por Brad Pitt. (levando em consideração o ano de lançamento do filme, não se pode chamar de spoiler o que vamos contar aqui! 😏) No final do filme, além de uma bela explosão (dinamites!) descobre-se que Jack (escravo da moral) e Tyler (senhor da moral) são na verdade a mesma pessoa. O filme todo é uma guerra interna entre a moral de escravo e a moral de senhor; é uma guerra de espíritos. O Clube da Luta traz ainda conceitos como o Niilismo e o Ubermensch.  Quem se interessar a assisti-lo novamente, pode prestar atenção na simbologia (a começar pela fábrica de sabonetes que vem para limpar a sujeira deixada por essa moral distorcida) e também nas claras frases nietzschianas ao longo do filme. =]


“Reveja os seus valores e ouse ser você mesmo” [5]

E, para fechar o texto de hoje, vale citar o trecho de Ecce Homo de onde vem outra frase famosa de Nietzsche:


“No fato de um homem bem-educado fazer bem aos nossos sentidos: no fato de ele ser talhado em uma madeira que é dura, suave e cheirosa ao mesmo tempo. A ele só faz gosto o que lhe é salutar; seu prazer e seu desejo acabam lá onde as fronteiras do salutar passam a estar em perigo. Ele adivinha meios curativos contra lesões, ele aproveita acasos desagradáveis em seu próprio favor; o que não o mata, fortalece-o. (...) Acabei de descrever a mim mesmo.” [6]


E você? É habilidoso em que? Já assumiu quem você vê na frente do espelho? Já se tornou quem de fato é? 😊 Isto não é algo simples. Exige auto observação, auto avaliação e auto conhecimento. E se enxergar separado da influência do meio é um processo contínuo, diário, de trabalho constante. Vale lembrar que a conquista do espelho vem antes da conquista do espaço, como já dizia o rock progressivo sulista dos Engenheiros do Hawaii, no longínquo inverno de 1992. 


Boas semana e boas reflexões! 🙋


Renata Chinda


rechinda@gmail.com


 [1] Nietzsche – Ecce Homo – Prólogo, aforismo 2


[2] Nietzsche – Ecce Homo – Por que eu sou um destino, aforismo 1


[3] Nietzsche – Ecce Homo – Prólogo, aforismo 3


[4] Nietzsche - Além do Bem e do Mal


[5] Fight Club - Tyler Durden


[6] Nietzsche – Ecce Homo – Por que sou tão sábio, aforismo 2


 CURIOSIDADES


(1)     Hoje tivemos um texto bastante conciso sobre Ecce Homo. Há aforismos maravilhosos nesta obra. Desde a citação de Buda, dos Vedas, e como Nietzsche responde quem o trata de maneira “azeda” (aforismo 5 de “por que sou tão sábio) até o passo a passo de um duelo honesto! Ficou com vontade de ler? Passa lá na nossa biblioteca para conhecer o livro. Quando for comprá-lo sugerimos a tradução de Paulo César de Souza.


 (2)     Ecce Homo – eis o homem! Palavras de Pôncio Pilatos ao apresentar Jesus à multidão. Nietzsche e suas referências bíblicas...
 

Comentários

  1. Zeitgeist, vai ser uma experiência interessante assistir O Clube da Luta novamente procurando pela simbologia. Me lembrei de uma mensagem que aparece em um frame, na versão em DVD e que mexeu comigo quando era ainda um adolescente:
    “Você não tem nada para fazer? Sua vida é tão vazia que você não consegue vivê-la melhor? Você lê tudo o que deveria? Pensa tudo o que deveria? Comece a brigar. Prove que você está vivo. Se você não reivindicar sua humanidade, você se tornará apenas estatística.”

    Apenas alguns anos atrás tive contato com as obras de Nietsche e tenho gasto tempo refletindo sobre sua obra, suas postagens tem contribuído para a minha reflexão, obrigado!
    Atc, Celso

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    Respostas
    1. Oi Celso

      O Clube da Luta transborda filosofia nietzscheana! Uma dica é procurar no Google toda essa simbologia antes de assistir de novo o filme. Assim se aproveita melhor o significado de cada parte! Uma simbologia interessante é o fato de Jack passar um tempo sem dormir, ou seja, acordado. E quando procura ajuda médica (para voltar a dormir!) é recomendado a partilhar do sofrimento alheio. Trazendo isto para a filosofia podemos lembrar da fase de Heráclito de Éfeso, pré-socrático inspirador de Nietzsche: “Não se deve agir nem falar com os que dormem!” É o que Nietzsche chama de doença. A vida vivida de ilusões. A fuga da realidade na esperança de um futuro ideal. E Qd se acorda, o consolo mais comum é a busca religiosa, não a espiritual. E a religião é carregada de moral. Enfim, poderíamos ficar um bom tempo conversando sobre isso! :)
      Obrigada pelo comentário e por acompanhar o blog!!
      Bom filme pra vc!
      Um abraço
      Renata Chinda

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