QUEM SOMOS NÓS?



“Eu antes tinha querido ser os outros para conhecer o que não era eu. Entendi então que eu já tinha sido os outros e isso era fácil. Minha experiência maior seria ser o outro dos outros: e o outro dos outros era eu. ” [1]

No texto da semana passada, conversamos um pouco à repeito das idéias de Bauman sobre o mundo líquido, ou seja, como se apresentam o sujeito e suas relações no momento atual. Entretanto, achamos melhor resgatar a historia para não corrermos o risco de visualizarmos somente a ponta do iceberg...

Por isso, decidimos fazer um apanhado sobre as ideias dos principais - 'taí um conceito relativo - filósofos do século passado, no que diz respeito ao estudo da evolução do sujeito no meio no qual ele está inserido. Vamos passar brevemente por Nietzsche, Sartre, Foucault, Deleuze e Derrida. Então, bóralá! J  

Para Sartre (1905-1980) o ser humano é sujeito das suas ações e, portanto, é dotado de liberdade. Daí a famosa máxima:

“O homem está condenado a ser livre.” [2]

O ponto aqui é o mesmo que tratamos no texto sobre Mundo Líquido. Uma vez que o Século XX desconstrói toda a cadeia de obrigações e responsabilidades socialmente carregadas até o século XIX, isso implica que o sujeito precisa fazer suas próprias escolhas. E, portanto, são as escolhas que ele toma que fazem dele aquilo/quem ele é. Aqui a identidade do sujeito se impõe até mesmo pelo próprio momento histórico. As duas Grandes Guerras Mundiais colocam em questão social quem é cada sujeito frente ao outro. Quem são os franceses frente aos ingleses? E frente aos alemães?

Aqui vale citar “ A Transcendência do Ego”, publicado em 1936 por Sartre. Só para explanar um pouquinho e de maneira bem abrangente (nunca seria nossa pretensão tentar explicar um livro de Sartre em uma única frase, é somente à título de contextualização mesmo), este livro trata de como percebemos nós mesmos. E se percebemos nós mesmos é porque somos ao menos dois: quem percebe e quem é percebido! A transcendência do ego, grosso modo, significa o que ainda sou eu e está além de mim – Esk denkt in mir.

Já para Nietzsche o sujeito é uma configuração temporária de impulsos, o ser-humano está em permanente processo de mudança. O sujeito é pluralidade e relação. Para não nos estendermos, podemos citar Es denkt in mir (again!), Vontade de Potência, Apolíneo e Dionisíaco.

Para Foucault, não somos sujeitos, nós nos tornamos sujeitos através de relações de poder.

“O indivíduo, com sua identidade e características, é o produto de uma relação de poder exercida sobre corpos, multiplicidades, movimentos, desejos, forças.” [3]

Para Deleuze o indivíduo não existe, porque o termo indivíduo só faz sentido se pensarmos conjuntamente o termo sociedade. Somos indivíduos porque vivemos numa sociedade. Pra fugir deste conceito, Deleuze prefere usar o termo singularidade. Assim, somos singulares na nossa multiplicidade.

“O eu é apenas um limiar, uma porta, um devir entre duas multiplicidades.” [4]

Já, para Derrida, o sujeito é uma fábula.

“Il n’y a jamais eu pour personne Le Sujet, voilà ce que je voulais commencer par dire. Le sujet est une fable” [5]

Isso quer dizer que o sujeito, o “eu”, é construído a partir da alteridade, da distinção do diferente.

“Houve aliás um tempo, nem longínquo nem terminado, em que “nós os homens ‘queria dizer’ nós os europeus adultos machos brancos carnívoros e capazes de sacrifícios.” [6]

Ou seja, a filosofia do século XX trouxe um novo modo de olhar o sujeito. E isso foi necessário, porque a definição de “sujeito” mudou ao longo do tempo.  Mudanças na escrita, na imprensa, na informática, o surgimento da pós-modernidade – foram fatores tão impactantes na história que nos obrigaram a repensar o “sujeito”.

No mundo atual, pós-moderno, as fronteiras são menos perceptíveis e as referências acabam por se diluir. E a identidade? Que identidade? Identidade corporal, talvez? Hmmm mas e os implantes de silicone, os transplantes, o botox.... Natural e artificial... Modelo e cópia... essas relações se perderam com o tempo. Tudo aquilo que se dá numa linguagem platônica, no mundo das ideias, tudo isso não tem mais poder eficiente.

Com todas essas mudanças o ser humano se fragmenta. Ao ser humano passaram a ser associadas múltiplas imagens. E continuam se associando essas imagens. De maneira que continua a haver uma proliferação de imagens sem nenhuma referência. O que ocorreu nos últimos 60 anos: o sujeito fixo, responsável, ponto de referência, passou ao sujeito como pluralidade e inter-relação e, por fim, a uma proliferação de imagens sem suporte.

Quantas pessoas estão conectadas hoje no mundo? Tempo e espaço se alteram com o mundo virtual. As relações com os outros seres humanos também são afetadas. Todos muito próximos e ao mesmo tempo muito distantes.

Sujeito e identidade? Bom, temos uma infinita possibilidade de logins, diferentes contas de Facebook, LinkedIn, Tinder... podemos inventar a todo momento novas características para nós mesmos, nos apresentarmos de diferentes maneiras... como uma espécie de “multiplicação de identidades”. Ahhh Mas as pessoas podiam também fazer isso antes da internet. De certa forma podiam... mas não faziam. O peso e o significado social eram diferentes. Frequentemente, os sobrenomes indicavam a profissão da família e a cidade de nascimento dos indivíduos. Era a identidade do pertencimento.

Hoje não temos mais estes padrões, não é possível mais seguir uma linha que seja a mesma em todas as circunstâncias, porque nós nos mostramos de diferentes maneiras na nossa fragmentação, nos nossos pedaços, nos nossos pertencimentos vários. Assim as tomadas de decisão ficam sempre sujeitas ao tempo e ao espaço no qual estamos inseridos e, não raro, à diferenciação de mim em relação ao outro. Ou você nunca ouviu nada como: “ah, não sou tão bom em (..) quanto ele, mas é porque ele não faz o que eu faço em (...)!”. Padrões comparativos que podem estar negando o exterior para afirmar o interior e acabam resultando em uma moral escrava! Aqui vale também lembrar de a Genealogia da Moral, do Nietzsche.

Estamos, sem dúvidas, vivendo um momento de transição no contexto sujeito-sociedade. Esse é o chamado mundo líquido que trouxemos na semana anterior.  Este é o mundo atual segundo o ponto de vista da filosofia do século do XX, lida e interpretada por nós (eu, eu mesma e minha múltiplas fragmentações). J

A ideia aqui é tentar contextualizar nosso tempo e trazer uma aplicação prática. Como diria Foucault, não abrir portas, mas fabricar ferramentas para que as pessoas possam abrir as suas próprias portas. Esse é o poder do pensamento crítico, de levantar questões desde dentro.

Assim, a conclusão a que chegamos é que o mundo líquido trouxe consigo um sujeito fragmentado e, portanto, inseguro, sem referências, mas que, em contrapartida, é capaz de mudanças extraordinárias em curto períodos de tempo. O maior desafio aqui está na definição: quem sou eu, quem é você, quem somos nós? O sujeito definido à partir da negação do outro é completamente diferente do sujeito formado à partir da afirmação de si mesmo, como já se fazia observar Nietzsche, pouco mais de 100 anos atrás.

Independentemente de quantos possamos ser dentro de nós mesmos, para que a vida valha a pena, devemos amar cada uma de nossas facetas. “Ahhh mas isso é tão clichê, além de soar completamente impossível! Eu não gosto disto, disso e daquilo em mim e no meu comportamento...” Bom, aí temos dois pontos: 1. É fácil identificar que quem faz e quem percebe são “sujeitos” diferentes em uma mesma pessoa. 2. Você será, eterna e certamente, sua mais fiel companhia (reditus aeternum). Se não gosta de algo, mude! 

Até quando você vai esperar para exigir o melhor para si mesmo? [7]

Boa semana! Boas reflexões! Nos vemos por aí! 🙏

Renata Chinda
rechinda@gmail.com

"Enfim, enfim quebrara-se realmente o meu invólucro, e sem limite eu era. Por não ser, eu era. Até o fim daquilo que eu não era, eu era. O que não sou eu, eu sou. Tudo estará em mim, se eu não for; pois “eu” é apenas um dos espasmos instantâneos do mundo. Minha vida não tem sentido apenas humano, é muito maior – é tão maior que, em relação ao humano, não tem sentido. […] Mas agora, eu era muito menos que humana – e só realizaria o meu destino especificamente humano se me entregasse, como estava me entregando, ao que já não era eu, ao que já é inumano. E entregando-me com a confiança de pertencer ao desconhecido. […] E tal entrega é o único ultrapassamento que não me exclui. Eu estava agora tão maior que já não me via mais. Tão grande como uma paisagem ao longe. Eu era ao longe." [8]

BIBLIOGRAFIA

[1] Clarice Lispector – A experiência maior – Para não esquecer
[2] Existentialism is a Humanism; lecture given in
[3] Foucault, M. (1980). Power/Knowledge: Selected Interviews and Other Writings 1972-1977. New York: Pantheon Books - 1980: 73-4
[5] Derrida, Points de suspension, p. 272
[6] Derrida - Do direito à justiça, op.cit. p,30/31.
[7] Epicteto - Manual de Epicteto
[8] Lispector, C, A paixão segundo GH. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1979. p. 174-175



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