APOLÍNEO E DIONISÍACO
O
Nascimento da Tragédia (ONT), no original alemão Die Geburt der Tragödie aus dem Geiste der Musik – O Nascimento da
Tragédia no Espírito da Música, foi publicado em 1872 e foi o primeiro livro de
Nietzsche. Ao longo das suas edições teve variações no seu subtítulo tais como
“helenismo e pessimismo” ou “mundo grego e pessimismo – ensaio de uma autocrítica”.
Este
livro traz questionamentos sobre a tradicional divisão entre o discurso
racional-filosófico e a expressão artístico-criativa e busca explicar desde a
origem da tragédia grega clássica até o porquê da cultura moderna estar doente
e de que forma deve ser restaurada. Não resta dúvidas de que esta foi uma
publicação ambiciosa, no melhor dos sentidos, para alguém com apenas 27 anos em
1872. A parte que vamos ressaltar sobre este livro é justamente a relação Apolíneo
– Dionisíaco e tentar trazê-la para a nossa realidade.
Antes
mesmo de começarmos, vale a ressalva de que a proposta de Nietzsche não é de
maneira alguma o culto a deuses gregos, uma vez que ele mesmo é o filósofo do
martelo, do Crepúsculo dos Ídolos, como vimos no texto sobre o Niilismo. A
proposta é o estudo da representação destas figuras no mundo da realidade
através das suas representações metafóricas.
“...
Estes nomes (apolíneo e dionisíaco), nós os tomamos emprestados dos gregos que
tornaram inteligível ao observados o sentido oculto e profundo de sua concepção
de arte, não por meio de conceitos, mas com a ajuda das figuras nitidamente
significativas do mundo de seus deuses. É às suas duas divindades das artes,
Apolo e Dionisio, que se liga nossa consciência do extraordinário antagonismo,
tanto de origem como dos fins ...” [1]
Na
mitologia grega Apolo é o deus do sol, da ordem, da razão e da harmonia. Dionisio é o deus do vinho, do divertimento e
da liberdade sensual. Assim, logo no
primeiro aforismo de ONT, Nietzsche nos propõe imaginar o apolíneo como representado pelo sonho, enquanto o dionisíaco
pela embriaguez. Assim, o Apolíneo nos revelaria formas belas e
delineadas, porém delimitadas pela nossa concepção ilusória do ideal. O
Dionisíaco, por sua vez, transbordaria os limites da representação, mas levando
tudo para o caos.
Segundo
Nietzsche, Apolo tem uma visão solar, pois independentemente das circunstâncias
ele precisa manter a serena sabedoria do deus da forma. Apolo não exprime preocupação
ou ira, pois seu reflexo sagrado da visão de beleza não pode desaparecer.
Assim, num sentido excêntrico e seguindo as ideias de Schopenhauer, Nietzsche
diz que Apolo é o homem preso no véu de Maia.
“Como
um navegador num barco, tranquilo e confiante em sua frágil embarcação, no meio
de um mar tormentoso que, sem limites e sem obstáculos, eleva e abaixa com
bramidos montanhas de ondas espumantes, o homem individual, no meio de um mundo
de tormentos, permanece impassível e sereno, apoiado com confiança no principium individuationis.” [2]
O
princípio de individuação, em Schopenhauer, é o princípio que possibilita a percepção
das coisas individualmente pelos sentidos, no tempo e no espaço. Assim, para
Nietzsche, Apolo poderia ser a própria representação do princípio de individuação:
o homem que tem uma visão de mundo de inabalável confiança e calma segurança.
Porém, este homem é tomado por um espantoso horror quando “ele, repentinamente, se engana nas formas de conhecimento do fenômeno, no qual o princípio da razão, em alguma de suas manifestações, parece sofrer uma exceção”. [1]
Ou
seja, quando algo não sai como esperado, quando este homem apolíneo é obrigado
pelas circunstâncias a modificar sua visão de mundo, quando seu princípio de individuação
é rompido.
“Se,
além desse horror, considerarmos o êxtase delicioso que, diante dessa ruptura
do principium individuationis, se eleva do fundo mais íntimo do homem, da própria
natureza, então começamos a entrever em que consiste a essência do dionisíaco,
que melhor ainda compreendemos pela analogia da embriaguez.” [1]
Isto
é, naturalmente, o dionisíaco reflete
também o prazer pela descoberta, este é o encantamento! Nas palavras do próprio
Nietzsche: “a natureza celebra a reconciliação com seu filho pródigo, o homem.”
[1]
“Como
se o véu de Maia se tivesse rasgado e como se flutuasse de um lado para o outro
diante do misterioso Um universal. Cantando e dançando o homem se manifesta
como membro de uma comunidade superior: ele desaprendeu a caminhar e falar e está a ponto de, dançando, voar pelos ares.” [1]
É
o homem se entregando aos encantamentos dos sentimentos, dos impulsos, deixando
o racional em stand-by. Fazendo isso, tem-se acesso aos sentimentos mais íntimos
e inculcados daquilo do que somos feitos. Por isso a comparação do dionisíaco com
a embriaguez!!
Segundo
Nietzsche o que separa o homem das suas emoções mais intrínsecas origina-se nos
ideais Apolíneos. É como se a razão nos distanciasse da conexão essencial com o eu.
Já o Dionisíaco toma esta experiência como de suma importância, ampliando o
homem na medida que ele percebe que ele
é um e o mesmo com todas as
demandas da experiência humana.
Assim,
nosso filósofo do martelo, completamente anti-platônico, nos diz que Sócrates e
Platão com a valorização da racionalidade e do idealismo, criaram séculos de uma
cultura que valoriza o Apolíneo em detrimento do Dionisíaco. Ou seja, segundo os
preceitos socráticos e platônicos razão é melhor que emoção.
A
proposta de Nietzsche é estabelecermos um modo de vida que seja equilibrado
entre esses dois lados, uma vez que ele considera tanto razão como emoção de
suma importância. Se por um lado temos excessos Apolíneos, é como se tivéssemos
pretensões dos deuses do Olimpo. Ao passo que se temos excessos Dionisíacos,
corremos o risco de nos transformar em Mênades e Sátiros.
O
texto de hoje acaba por aqui, trouxe muito do primeiro aforismo de ONT, e tem
por objetivo justamente nos fazer refletir sobre qual nosso ponto de equilíbrio
entre estes dois lados, qual a proporção adequada entre apolíneo e dionisíaco
para o momento que estamos vivendo. Nietzsche, em Ecce Homo, se dizia um
adorador de Dionisio! =]
Até
o próximo texto! 🙋
Renata Chinda- rechinda@gmail.com
Renata Chinda- rechinda@gmail.com
CURIOSIDADES
A
quem interessar, segue um dos nove Ditirambos* a Dionisio compostos por
Nietzsche. Esses Ditirambos têm usualmente sido publicados ao final de algumas
edições de O Anticristo. O Ditirambo aqui escolhido foi “Lamento De Ariadne”.
Um rápido review mitológico: Ariadne ajudou Teseu
a matar o minotauro e a sair do labirinto na esperança de que o rapaz se
casasse com ela. Mas o casamento não aconteceu... Dionisio também a desejava.
Há várias versões sobre como Teseu saiu da história, mas em todas elas Dionisio
e Ariadne ficam juntos no final. Esse Ditirambo se passa no momento em que Ariadne
se descobre abandonada por Teseu e então Dionisio a desposa. É nesse Ditirambo que aparece a famosa frase de
Nietzsche: “Eu sou o seu labirinto!”
Análise deste Ditirambo (muito boa, por sinal):
Sugestão de música para acompanhar a leitura:
Enjoy it! ;)
Quem me aquece, quem me ama ainda?
Daí-me mãos quentes!
Daí-me braseiros para o coração!
Estendida, transida,
qual semi-morta a quem se aquecem os pés,
tiritando, ai! de desconhecidas febres,
estremecendo ante as ponteagudas e frias setas de gelo,
acossada por ti, pensamento!
Inominável, Oculto! Medonho!
Tu, caçador por trás das nuvens!
Fulminada pelo teu raio,
ó olhar escarninho que me fita do escuro!
Assim estou prostada,
vergo-me e contorço-me, torturada
por todos os eternos tormentos, atingida
por ti, crudelíssimo caçador,
ó desconhecido – deus...
Fere mais fundo!
Fere novamente!
Trespassa, quebra este coração!
Para quê este tormento
com setas de dentes embotados?
porque olhas de novo,
sem te cansares do suplício humano,
com os divino olhos que relampejam malícia?
Não queres matar,
Só torturar, torturar?
Para quê – atormentar-me a mim
Ó malicioso deus desconhecido?
Ah! Ah!
vens furtivamente
por esta meia-noite?
Que pretendes?
Fala!
Sufocas-me, oprimes-me,
Ah! demasiado perto já!
Ouves-me respirar,
auscultas o meu coração,
ó ciumento!
- ciumento de quê?
Vai-te! Vai-te!
para quê a escada?
queres penetrar nele, no meu coração, entrar nos meus mais recônditos
pensamentos, entrar?
Desvergonhado! Desconhecido! Ladrão!
Que queres tu roubar?
Que queres tu espiar?
que queres extorquir de mim pela tortura,
ó torcionário!
ó deus-carrasco!
Ou deverei eu, como um cão,
espojar-me diante de ti?
Submissa, fascinada, fora de mim
pedir-te amor – abanando a cauda?
Em vão!
Fere novamente!
crudelíssimo aguilhão!
Não teu cão – mas tua presa sou agora,
crudelíssimo caçador!
a tua altiva prisioneira,
ó salteador por trás das nuvens ...
Fala enfim!
Tu, oculto no relâmpago! Desconhecido! Fala!
Que queres tu, salteador, de – mim? ...
Como? Resgate?
Que queres tu de resgate?
Exige muito – aconselha-te o meu orgulho!
e fala pouco – aconselha-te o meu outro orgulho!
Ah! Ah!
A mim – queres-me? a mim?
a mim – toda?
Ah! Ah!
E torturas-me, ó doido,
quebras com suplícios o meu orgulho?
Dá-me amor – quem me acalenta ainda?
quem me ama ainda?
dá-me mãos quentes,
dá-me braseiros para o coração,
dá-me, à mais solitária
a quem o gelo, ai! sete camadas de gelo,
ensinam a ansiar pelos inimigos,
pelos próprios inimigos,
dá-me, sim, rende-me,
crudelíssimo inimigo,
- a ti!...
Desapareceu!
Fugiu,
o meu único companheiro,
o meu grande inimigo,
o meu desconhecido,
o meu deus-carrasco!...
Não!
Regressa!
Com todos os teus tormentos!
Todas as minhas lágrimas correm
em torrente para ti
e a derradeira chama do meu coração
inflama-se para ti.
Oh! regressa,
meu deus desconhecido! minha dor!
minha derradeira felicidade! ...
(Um relâmpago. Dionísio aparece na sua esmeraldina beleza)
DIONISIO: Sê sensata, Ariadne!
< Tens orelhas pequenas, tens as minhas orelhas:
acolhe nelas uma palavra sagaz! –
Não há que odiar primeiro, antes de amar? ...
Eu sou teu labirinto...
Daí-me mãos quentes!
Daí-me braseiros para o coração!
Estendida, transida,
qual semi-morta a quem se aquecem os pés,
tiritando, ai! de desconhecidas febres,
estremecendo ante as ponteagudas e frias setas de gelo,
acossada por ti, pensamento!
Inominável, Oculto! Medonho!
Tu, caçador por trás das nuvens!
Fulminada pelo teu raio,
ó olhar escarninho que me fita do escuro!
Assim estou prostada,
vergo-me e contorço-me, torturada
por todos os eternos tormentos, atingida
por ti, crudelíssimo caçador,
ó desconhecido – deus...
Fere mais fundo!
Fere novamente!
Trespassa, quebra este coração!
Para quê este tormento
com setas de dentes embotados?
porque olhas de novo,
sem te cansares do suplício humano,
com os divino olhos que relampejam malícia?
Não queres matar,
Só torturar, torturar?
Para quê – atormentar-me a mim
Ó malicioso deus desconhecido?
Ah! Ah!
vens furtivamente
por esta meia-noite?
Que pretendes?
Fala!
Sufocas-me, oprimes-me,
Ah! demasiado perto já!
Ouves-me respirar,
auscultas o meu coração,
ó ciumento!
- ciumento de quê?
Vai-te! Vai-te!
para quê a escada?
queres penetrar nele, no meu coração, entrar nos meus mais recônditos
pensamentos, entrar?
Desvergonhado! Desconhecido! Ladrão!
Que queres tu roubar?
Que queres tu espiar?
que queres extorquir de mim pela tortura,
ó torcionário!
ó deus-carrasco!
Ou deverei eu, como um cão,
espojar-me diante de ti?
Submissa, fascinada, fora de mim
pedir-te amor – abanando a cauda?
Em vão!
Fere novamente!
crudelíssimo aguilhão!
Não teu cão – mas tua presa sou agora,
crudelíssimo caçador!
a tua altiva prisioneira,
ó salteador por trás das nuvens ...
Fala enfim!
Tu, oculto no relâmpago! Desconhecido! Fala!
Que queres tu, salteador, de – mim? ...
Como? Resgate?
Que queres tu de resgate?
Exige muito – aconselha-te o meu orgulho!
e fala pouco – aconselha-te o meu outro orgulho!
Ah! Ah!
A mim – queres-me? a mim?
a mim – toda?
Ah! Ah!
E torturas-me, ó doido,
quebras com suplícios o meu orgulho?
Dá-me amor – quem me acalenta ainda?
quem me ama ainda?
dá-me mãos quentes,
dá-me braseiros para o coração,
dá-me, à mais solitária
a quem o gelo, ai! sete camadas de gelo,
ensinam a ansiar pelos inimigos,
pelos próprios inimigos,
dá-me, sim, rende-me,
crudelíssimo inimigo,
- a ti!...
Desapareceu!
Fugiu,
o meu único companheiro,
o meu grande inimigo,
o meu desconhecido,
o meu deus-carrasco!...
Não!
Regressa!
Com todos os teus tormentos!
Todas as minhas lágrimas correm
em torrente para ti
e a derradeira chama do meu coração
inflama-se para ti.
Oh! regressa,
meu deus desconhecido! minha dor!
minha derradeira felicidade! ...
(Um relâmpago. Dionísio aparece na sua esmeraldina beleza)
DIONISIO: Sê sensata, Ariadne!
< Tens orelhas pequenas, tens as minhas orelhas:
acolhe nelas uma palavra sagaz! –
Não há que odiar primeiro, antes de amar? ...
Eu sou teu labirinto...
*composição
poética dedicada a Dionisio
[1] O Nascimento da Tragédia §1
[2] O mundo como Vontade e como Representação,
I
Imagem : Baco e Ariadne de Jules Dalou Aimé 1894
Maravilha!!!! É um deleite o texto! 🍷
ResponderExcluirObrigada, Suzana!! ☺️🙏🏻
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