VONTADE DE VERDADE
Nitimur
in vetitum - “Nós buscamos o proibido.” [1]
Desde os primórdios até hoje em
dia, o homem ainda faz o que o pré-socrático fazia: a busca da verdade!! =] Ou
ninguém nunca te perguntou qual a verdade sobre determinado fato?
Mas afinal, o que é a verdade?
Aqui, vamos partir de Empédocles, filósofo pré-socrático, que forma a concepção
da verdade à partir de multiplicidade e do movimento do mundo da vida. Vale
lembrar que pré-socráticos, como a própria nomenclatura indica são filósofos
anteriores à Sócrates e que desenvolveram suas teorias do século VII ao V a.C.
Empédocles declara em seu poema Sobre a
Natureza que pretende apresentar “não uma verdade absoluta, mas apenas o
que pode alcançar a compreensão de um mortal, uma verdade proporcional à ‘medida humana’.”[2] Assim, ele diz que
todos os sentidos de apreensão da realidade são legítimos e devem ser
considerados na constituição da verdade.
“Examina de todos os modos
possíveis de que maneira cada coisa se torna evidente. Não atribua mais crença
à tua vista do que a teu ouvido, a teu ouvido que ressoa mais do que às claras
indicações da tua língua. Não recuses a teus outros membros a tua confiança...” [2]
Seguindo na linha do tempo, temos
Platão (428/348 a.C.) e sua versão de verdade. Segundo
este filósofo, o que vivemos é uma ilusão e a grande verdade reside no mundo das ideias, onde tudo é perfeito e
imutável, mas não temos acesso a esse mundo a não ser pelo pensamento.
E, para não nos alongarmos em
demasia na nossa linha do tempo, chegamos a Nietzsche (1844/1900). Segundo
Nietzsche, a verdade é uma ilusão, é
uma das muletas metafísicas mais bem acabadas da história. Em “A Verdade e a
Mentira no Sentido Extramoral”, em alemão
Über Wahrheit und Lüge im aussermoralischem Sinn, publicado em 1873,
Nietzsche diz :
“O que é a verdade, portanto? Um
batalhão móvel de metáforas, metonímias, antropomorfismos, enfim, uma soma de
relações humanas, que foram enfatizadas poética e retoricamente, transpostas,
enfeitadas, e que, após longo uso, parecem a um povo sólidas, canônicas e
obrigatórias. As verdades são ilusões,
das quais se esqueceu que o são, metáforas que se tornaram gastas e sem
força sensível, moedas que perderam sua efígie* e agora só entram em
consideração como metal, não mais como moedas” [3] * efígie = representação do real
E o que isso quer dizer? Quer
dizer que é impossível traduzir o mundo da vida em palavras, por isso a verdade
é ilusória! Um exemplo bem prático: nasce um neném e os pais, amantes de
filosofia, decidem chamar a pequena de Sofia. Bom, eis que Sofia cresce e aos 5
anos ganha sua primeira carteira de identidade. A foto no RG, claro, é de Sofia
aos 5 anos. Porém, aos 15 anos, Sofia é obrigada por lei a atualizar a foto de
seu RG e depois aos 25, aos 35, aos 45 anos... Mas porque? Sofia aos 5 anos não é mais Sofia aos 25? Obvio que não!! Se fosse, não haveria
a necessidade de atualizar a foto! Mas aí entra a contradição!! Se Sofia aos 5
anos não é mais Sofia ao completar seus 25 anos, deveríamos então chamá-la por um
outro nome e não somente atualizar a foto para fazer corresponder a imagem à
palavra! E isso não seria somente uma vez ao ano, no aniversário dela, isso
seria a cada infinitesimal instante de tempo. Porque estamos em constante
transformação, não só física, mas principalmente psíquica. Pense, você ainda
tem todas as mesmas convicções, certezas e dúvidas da semana passada? Claro que
não. Coisas do dia-a-dia nos fazem mudar nossos pensamentos a todo instante.
Resumindo: as palavras tentam
transcrever o que as coisas são, enquanto que, no mundo da vida, as coisas
deixam de ser! O que significa que há um descompasso entre a linguagem e o
mundo da vida. Aqui vale a sugestão de leitura da tese de doutorado da Profª
Viviane Mosé, que acabou virando um excelente livro intitulado: “Nietzsche e a
grande política da linguagem”.
Assim, para que conseguíssemos
transcrever o mundo da vida em palavras cada “coisa”, pessoa, objeto, animal
deveria ter um nome diferente a cada instante. E isso faria com que a linguagem
perdesse seu objetivo comunicativo. Logo, chegamos à conclusão de que, segundo
Nietzsche, a verdade é uma ilusão, uma vez que é impossível fazer o discurso
corresponder à realidade.
Porém, pouco a pouco, a verdade
foi sendo considerada uma possibilidade e finalmente tornou-se uma regra moral. Ou
seja, uma impossibilidade converteu-se em um padrão moral.
“O homem reivindica a verdade e a
despende na relação moral com outros homens, sendo que nisso se baseia toda a
vida gregária. As consequências ruins das mútuas mentiras são por ele
antecipadas. A partir daí surge, então, a obrigação
da verdade.” [3]
Então, se a verdade é impossível,
por que somos obrigados moralmente a dizer a verdade?
“Ser verdadeiro significa apenas
não se desviar do sentido usual das coisas. ... Por verdadeiro compreende-se,
antes de mais nada, apenas aquilo que usualmente consiste na metáfora habitual –
portanto, somente uma ilusão que se tornou familiar por meio do uso frequente e
que já não é mais sentida como ilusão: metáfora esquecida, isto é, uma metáfora
da qual se esqueceu que é uma metáfora.”[3]
A verdade é um ponto de vista
determinado pelas experiências de cada um, uma vez que só podemos ver o mundo
com os olhos que são os nossos, com a força vital que é a nossa. Portanto não
há verdades absolutas, mas interpretações e visões do mundo transcritos por sua
vez em palavras que determinam o que já foi, o que já aconteceu. Assim, a busca da verdade, a
Vontade de Verdade, segundo Nietzsche, é uma estratégia de escravização moral.
Culpados por esta ideia? Sim, frequentemente
Nietzsche os aponta. Neste caso a culpa é de Sócrates e sua dialética. Quem
tiver interesse vale ler “O caso Sócrates”, capítulo de O Crepúsculo dos Ídolos.
Triunfantes sobre a Vontade de
Verdade? Sim, o Ubermensch, claro!! O Ubermensch não é escravo da moral, tem
clara a ideia de que ele é Energia vivendo num mundo de Energia e que não há
verdades. O desejo de verdade é
incompatível com a fugacidade do mundo.
Aqui, trouxemos uma visão mais
simplificada da verdade segundo Nietzsche. Além da verdade como linguagem, pode-se
citar ainda a verdade como negação da vida primitiva – uma vez que a elaboração de um conceito
desconsidera o individual através da igualação do não-igual – e a verdade como ilusão
massificante – levando em conta o grande edifício dos conceitos que sustenta a
moral.
E falando nisso, podemos concluir
que a própria linguagem se torna uma espécie de dissimulação, de mentira! E
isso faz lembrar novamente o último parágrafo de A Paixão Segundo GH, de Clarice
Lispector. =)
“Nunca mais compreenderei o que
eu disser. Pois como poderia eu dizer sem que a palavra mentisse por mim?” [5]
Até o próximo texto! 🙋
Renata Chinda- rechinda@gmail.com
CURIOSIDADES
Renata Chinda- rechinda@gmail.com
CURIOSIDADES
Vez ou outra os filósofos pré-socráticos pintam por aqui. Os filósofos pré-socráticos são considerados os primeiros filósofos da história. Assim pode-se dizer que a filosofia é dividida em antes e depois de Sócrates. Seria como nossa contagem de tempo de antes e depois de Cristo, mas aqui com o objetivo de dividir o objeto de filosofia. Por isso vale a ressalva de que existem alguns pré-socráticos contemporâneos e mesmos posteriores a Sócrates, como no caso de alguns sofistas. O que une os pré-socráticos é o questionamento sobre a natureza do mundo e a origem de todas as coisas. É uma filosofia dividida em várias escolas, dependendo principalmente do foco de estudo. Podemos citar aqui pré-socráticos tais como: Tales de Mileto, Anaximandro de Mileto, Anaxímenes de Mileto, Pitágoras de Samos, Xenófanes de Colofão, Empédocles, Heráclito de Éfeso, Parmênides de Eléia, entre outros. Como já sabemos Nietzsche era completamente controverso às ideias de pensamento que surgiram com Sócrates e Platão e que, direta ou indiretamente, nos influenciam até hoje. Por isso os pré-socráticos são citações recorrentes por aqui! :)
[1] Ovídio - Ars Amatoria – A
Arte de Amar
[2] Empédocles – Sobre a Natureza
[3] Nietzsche - A Verdade e a
Mentira no Sentido Extramoral
[4] Aula do Profº Clóvis, disponível em https://www.youtube.com/watch?v=3brc38AZbCQ&t=5268s
[5] Clarice Lispector - A Paixão Segundo G.H.
Maravilha! Cada semana mais instigantes os textos! ❤️🙏🏻
ResponderExcluirMuito obrigada Suzana!! =]
ExcluirOi Renata. Sabia que a Suzana escreve Haikai? Eu digo que esta é uma boa maneira de se aproximar da verdade, seguindo na linha de Empedocles. Um Haikai, como aprendi com a Suzana, carrega junto o tempo, da época, do clima e da estação. Carrega cores e cheiros, frio ou calor. Um bom Haikai pra hoje seria molhado como a sombra de um poço. A poesia não tem argumentos, já nasce verdade. Beijo!
ResponderExcluirExatamente Tarcisio!!! Adorei teu comentário! E vem bater com a teoria do Nietzsche de que a arte é a verdade, porque não vem da lógica, vem do inconsciente (spoiler do próximo texto). A Suzana tem um dom muito especial para escrever Haikais maravilhosos!! E pelo visto você também!! =] Genial ver na sombra a umidade! Obrigada pelo comentário! Beijo grande!
ExcluirVerdades paralelas? Visões paralelas? Todas certas e erradas?!?! Reféns da capacidade limitada de percepção de nosso hardware...
ResponderExcluirAté nosso cérebro nos engana constantemente para gerar conforto ou evitar confusões em coisas de assimilação mais complicada, como acreditar em algo de forma inflexível?!?! Mas a gente tende e insiste em fazer...
Isso mesmo Ramilio! Muito bem observado! Percepção limitada tanto pelos sentidos e experiências quanto pelos padrões sociais nos quais estamos inseridos. Eu acho que acreditar em algo de forma inflexível, como vc citou, é um conforto psicológico para nossa resistência em aceitar a transiência do mundo, por isso insistimos em fazer. Obrigada pelo comentário! Bjo
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