NIETZSCHE E A MÚSICA



“Pois que dedico esta coisa aí ao antigo Schumann e a sua doce Clara que são hoje ossos, ai de nós. (...) Dedico-me sobretudo aos gnomos, anões, sílfides e ninfas que me habitam a vida. (...) Dedico-me à tempestade de Beethoven. À vibração das cores neutras de Bach. A Chopin que me amolece os ossos. A Stravinsky que me espantou e com quem voei em fogo. À ‘Morte e Transfiguração’, em que Richard Strauss me revela um destino? Sobretudo, dedico-me às vésperas de hoje e a hoje, ao transparente véu de Debussy, a Marlos Nobre, a Prokofiev, a Carl Orff, a Schönberg, aos dodecafônicos, aos gritos rascantes dos eletrônicos - a todos esses que em mim atingiram zonas assustadoramente inesperadas, todos esses profetas do presente e que a mim me vaticinaram a mim mesma a ponto de eu neste instante explodir em: eu.” [1]

Bom, como vimos no texto passado, segundo Nietzsche, quando nomeamos, conceitualizamos, damos uma forma de palavra para as coisas, além da subjetividade intrínseca à conceitualização, temos o fato de que as palavras acabam por representar um mundo que já passou. Portanto não há verdades absolutas, mas interpretações e visões do mundo transcritos por sua vez em palavras que determinam o que já foi, o que já aconteceu.

Então, afinal, o que pode ser considerado verdade? Ora, o que não se diz com palavras! J Música e simbologia são ótimos exemplos!

“O que interessa para Nietzsche é investigar a relação da música e do símbolo com um domínio da experiência que escapa da estrutura linguística. Enquanto a palavra comunica um conteúdo determinado conceitualmente, o tom é sem forma ou conceito e corresponde a um modo de compreensão essencialmente distinto do entendimento.” [2]

"A música me transmite hoje sensações como eu nunca senti antes. Ela me libera de mim mesmo, ela me separa de mim mesmo como se eu me olhasse, como se eu me percebesse de muito longe: ao mesmo tempo ela me fortalece, e sempre após uma noite musical (...) a minha manhã transborda ideias e pensamentos corajosos. É como se eu estivesse mergulhado num elemento mais natural. A vida sem a música é simplesmente um erro, uma tarefa cansativa, um exílio." [3]

Ok!? Mas isto vale para toda música? (Ahhhh o conceito!!!) “A música da qual Nietzsche se refere não diz respeito à arte musical em si, mas sim a uma melodia original dos afetos ou uma melodia primordial, (...) , o querer universal. Desta música originária derivaria a música propriamente dita, a poesia lírica e épica, a linguagem prosaica e a científica, em ordem crescente. Nem mesmo a arte musical seria capaz de manifestar esta linguagem tão primordial, esta música dionisíaca, embora seja a que mais se aproxime dela.” [4]

Relembrando, a música dionisíaca é aquela que comove, aquela que mexe com os sentimentos. Já a música apolínea seria um encadeamento de ideias compreendido racionalmente. Os dois princípios são complementares entre si e da união deles, segundo Nietzsche, nasce a arte da tragédia grega.

“A música, na visão nietzschiana, era a experiência da verdade dionisíaca indissociável da aparência apolínea. O grande significado e papel da música é manter a possibilidade de acesso à realidade da natureza. A música seria a voz da natureza, a voz da realidade interior da vida. Fundar um Estado sobre a música é fundar um Estado sobre a própria realidade, como teriam feito os antigos helenos*.

A música, enquanto arte essencialmente dionisíaca, é o meio para se desfazer da individualidade. Nesse caso, ela é acrescentada de componentes apolíneos – cena e palavra – e o coro dionisíaco se descarrega em um mundo apolíneo de imagens. O mito trágico, criado pelo coro, apresenta uma sabedoria dionisíaca através do aniquilamento do indivíduo heróico e de sua união com o ser primordial, o uno originário (vontade). A finalidade é “aceitar o sofrimento com alegria” como parte integrante da vida, uma vez que o aniquilamento do indivíduo nada afeta a essência da vida.” [5] Olha o amor fati por aí de novo! =]

Assim, de uma maneira bastante genérica, poderíamos aproximar a arte ausente de padrões morais como um bom caminho para a verdade, capaz de intensificar a Vontade Potência. Pintura, poesia, dança, música, teatro, enfim, uma diversidade enorme de opções artísticas se apresenta para nós.E será que participamos disto tudo? Será que deixamos tudo isso participar de nós? Até onde tem arte em minhas vidas? =)

“O filósofo pensa a música como arte dionisíaca que traduz diretamente a dor e o prazer do querer, maximizando a vontade de vida.” [6]

Outro ponto que Nietzsche coloca como ausente de palavras é a expressão do nosso inconsciente através da simbologia. Mas isso fica pra um próximo texto. Por agora a ideia das artes como verdade de mundo é uma boa pedida pra fechar nosso domingo filosófico!

Até o próximo texto! 🙌

Renata Chinda- rechinda@gmail.com

[1] Clarice Lispector - A Hora da Estrela 
[2] Discurso, Revista do Dep de Filosofia da USP, p192, nº37, São Paulo, 2007
[3] Nietzsche, Cartas a Peter Gast, Nice, 15 de janeiro de 1889
[4] Viviane Mosé em Nietzsche e a Grande Política da Linguagem
[5] Célia E. de Paula, Nietzsche e a Música, Universidade de Brasília, 2006
[6] Nietzsche: Obras Incompletas, Coleção Os Pensadores, São Paulo: Abril Cultural, 1983, 3 ed.

CURIOSIDADES


* Os antigos helenos são os adeptos da Filosofia Helenística (de 323 a.C. a 31 a.C.). As principais escolas filosóficas formadas pelos helenos eram o ceticismo, o epicurismo, o estoicismo, o cinismo, a escola peripatética, o neopitagorismo, o platonismo e o ecletismo. Na Roma antiga as escolas com maior destaque foram o epicurismo e o estoicismo, sendo que Epicuro e Sêneca eram, respectivamente, seus principais representantes. Dos helênicos, Nietzsche apresenta algumas citações destas duas escolas em especial.

**  E falando-se em arte, nada melhor do que fechar o texto de hoje com um poema musicado. Segue Fios Elétricos do disco Supermercados da Vida do Barão Vermelho mostrando que existe poesia até no asfalto! 

Ruas...Poesia bruta,
Sentimentos de concreto,
Sangue que corre por fios elétricos

Ruas... Poema em linha reta,
Tua marginália tão discreta
Avenida que embriaga,
O fio da navalha

Ruas...poesia crua,
Pegadas na calçada,
Arranha-céu observa
Com olhos de vidraça

Ruas...poesia suja,
Um beijo no asfalto.
Neons vomitam, marcas,
Cruzes, cruzamentos, encruzilhadas...

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